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"É isso: tudo está ao alcance do homem e tudo lhe escapa, em virtude de sua covardia... Já virou até axioma. Coisa curiosa a observar-se: que é que os homens temem, acima de tudo? 'O que for capaz de mudar-lhe os hábitos': eis o que mais apavora..."

Dostoiévski

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

A REALIDADE EM PROSA:

breves olhares sobre a ficção de Alencar e Machado[1]

Paula Alves das Chagas.

Eu tenho a sensação de que a vida nos desafia permanentemente a poder contá-la. Que ela é mais vasta que a ideia que fazemos dela. Que ela não para nunca de nos confrontar com situações que nos ultrapassam completamente, mesmo que finjamos estar à altura delas, ou mesmo controlá-las.(...) temos o hábito de opor a ficção à realidade. Mas essa oposição é estúpida – e historicamente burguesa. Ela não faz justiça nem à realidade, nem à ficção. O que quero dizer é que realidade e ficção não se opõem. As ficções não param de fecundar a realidade e a realidade não deixa nunca de ser uma ficção em construção.

Grégoire Bouillier

É clássica a discussão acerca da relação entre ficção e realidade na literatura. Quais os limites entre o real e o imaginário? Em Iser, temos que “há no texto ficcional muita realidade que não só deve ser identificável como realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional” (1993, 385). Partindo dessa linha, resta-nos observar como se comporta a transposição – ou, antes, a imitação – do real para o campo ficcional. Este trabalho objetiva apontar aspectos dessa complexa relação em dois diferentes períodos literários, o romântico e o realista, tomando como suporte de análise quatro obras de grande relevância da literatura brasileira: Lucíola, de José de Alencar; Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Tanto o período romântico como o realista podem ser bem definidos, na literatura brasileira, pela obra de seus principais escritores: de um lado, temos a narrativa adocicada de José de Alencar e, de outro, seu oposto na erudição e ironia de Machado de Assis. O primeiro cai no gosto do público-leitor burguês com seus folhetins sentimentalistas, bem ao gosto romântico. É, portanto, justificável que o autor de Cinco minutos e Viuvinha tenha receio de assumir a autoria de Lucíola, sobretudo após a censura de As asas de um anjo. Isto porque, nessas duas obras, Alencar tenta traçar um perfil de mulher, que surge no lodo da prostituição e, através do verdadeiro amor, alcança a purificação.

Somando o desejo de se ocultar como autor à prática comum no romantismo de tentar convencer o leitor da veracidade da história narrada, Alencar cria um engenhoso jogo de autorias. “Tudo se passa como se o autor fosse Paulo, a personagem encarregada de narrar a estória, que teria feito chegar o enredo a G.M., na forma de cartas. De posse de tal material (...) ela teria construído o romance” (RIBEIRO: 2008, 78). Mais engenhosa ainda é a nota introdutória do livro, na qual G.M., senhora de cabelos brancos e avó de “uma gentil menina de 16 anos, flor cândida e suave, que mal desabrocha à sombra materna”, toma a pena em favor de Lúcia:

(...)

Deixe que raivem os moralistas.

A sua história não tem pretensões a vestal. É musa cristã: vai trilhando o pó com os olhos no céu. Podem as urzes do caminho dilacerar-lhe a roupagem: veste-a a virtude.

(...)

(ALENCAR: 1996, 13)

Antes mesmo que a história de Lúcia nos seja apresentada, temos um julgamento de seu caráter: é musa cristã! E não por acaso, seu nome de batismo é Maria da Glória. Os nomes distinguem os níveis do perfil de mulher traçado por Alencar. Lúcia é o corpo, a carne marcada pelos prazeres do luxo, pela perdição da sensualidade, pelo orgulho satânico da altivez feminina. Maria da Glória é a alma, a moral imaculada, o espírito devoto, a virgindade romântica.

A cortesã do Império é redimida pelo amor de Paulo e cede seu lugar a Maria da Glória. Paulatinamente, a virtude da alma vai sufocando a carne corrompida, até matá-la. Mas matar Lúcia não é garantia de felicidade para Maria da Glória, afinal, a sociedade não a vê pelo espírito, mas pela carne. A mulher prostituída não tem direito a um casamento, “sagrada instituição”, e, menos ainda, a gerar em seu corpo maculado um ser puro. A saída está na morte física da protagonista. A morte a santifica, reafirma seu caráter de “musa cristã” e eleva a outro plano o amor redentor que não pode concretizar em vida.

Com o lançamento de Lucíola, houve quem a tomasse por uma mera retomada de Marguerite Gautier, a famosa Dama das Camélias de Dumas Filho. É certo que a temática da prostituta redimida é comum às duas obras, mas os objetivos de Alencar com sua cortesã parecem ser bem mais amplos que os do autor francês. Lucíola é uma resposta à censura de As asas de um anjo. É uma discussão sobre as convenções sociais e, ao mesmo tempo, uma narrativa moralizadora. É reflexão do fazer literário de seu tempo. É o resgate do processo de conhecimento da realidade através do romance.

Tal processo se desencadeia cuidadosamente na obra de Machado de Assis, sobretudo nos três romances aqui estudados. Uma das principais marcas da narrativa machadiana é a quantidade considerável de citações que faz no decorrer do texto, ou seja, o constante diálogo com outras obras, outras “realidades” que, de alguma forma se relacionam com a “realidade” da sua ficção. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo, pode-se notar uma alusão à obra Cândido, ou o Otimismo, de Voltaire: “(...) Pangloss, o caluniado Pangloss, não era tão tolo como o supôs Voltaire”(ASSIS: 1991, 192). Esta curta e aparentemente ingênua frase, proferida pelo filósofo Quincas Borba em seu leito de morte, revela fortes sentidos quando confrontada com seu contexto. Saída da boca de um filósofo, em estado de loucura, dono de argumentos duvidosos e insuficientes e criador do Humanitismo – espécie de darwinismo social – a retomada do insistente filósofo otimista de Voltaire tem um tom altamente irônico.

Memórias Póstumas reserva-nos também perfis de mulher. Estes, porém, estão bem distantes do desenhado por Alencar. A primeira grande mulher que surge, cronologicamente, na vida de Brás Cubas nada mais é que uma cortesã. A “linda Marcela” amou-o “durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos” (ASSIS: 1991, 49). Não se trata, aqui, de uma redenção pelo amor; nem Marcela é Lúcia, nem Brás Cubas é Paulo. Enquanto que a “musa” de Alencar era um misto de carne e alma, Marcela parece ser toda carne. Sua mácula não está somente nos níveis físico e social, mas também no moral.

Outra figura feminina que marca a obra é Virgília, a mulher com a qual o defunto-autor tem seu relacionamento mais intenso e duradouro. É através dessa mulher que Machado evoca o tema da traição, tão comum em sua ficção. John Gledson, pelas palavras de Sevcenko, crê que

Essa compulsão traidora se revela quintessencial para a compreensão da história do país em múltiplas dimensões, seja por exemplo pelo modo como as elites traem o povo, os partidos traem seus ideais, os dirigentes traem suas responsabilidades, os proprietários traem seus dependentes, os arrivistas traem suas origens e os conservadores traem sua honra.

(GLEDSON: 2003, 19-20)

Virgília é a esposa adúltera; aquela que possui o matrimônio que é negado, por convenções sociais, a Lúcia, e busca o amor em outro homem. Seu perfil, tão diferente do da musa cristã de Alencar, começa a ser delineado desde o capítulo XXVII:

Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas (...). Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação.

(ASSIS: 1996, 66)

Outro forte contraste com Lucíola está em Sofia, principal figura feminina de Quincas Borba. Esta, mulher casada e muito atraente, desperta o fascínio do provinciano Rubião, amigo de seu marido. Mas não é com ele que Sofia trai Cristiano Palha; é com Carlos Maria, ou, antes, com os galanteios e a imagem deste. A traição não ocorre no nível físico, mas no mental. Sofia chega a sonhar com Carlos e tem “maus pensamentos”, que não lhe causam remorsos, pois

Não é só nas ações que a consciência passa gradualmente da novidade ao costume, e do temor à indiferença. Os simples pecados de pensamentos são sujeitos a essa mesma alteração, e o uso de cuidar nas cousas aperfeiçoa tanto a elas – que, afinal, o espírito não as estranha, nem as repele. E nestes casos há sempre um refúgio moral na isenção exterior, que é, por outros termos mais explicativos, o corpo sem mácula.

(ASSIS: 2007, 154)

O refúgio moral de Sofia é o “corpo sem mácula”, pois este permanece fiel, embora a alma já não o seja. Ocorre com ela o oposto do que perpassa Lúcia. Nesta, a alma é o refúgio, ao passo que o corpo está perdido e simboliza a corrupção social.

Algo semelhante ocorre com Capitu, a protagonista de Dom Casmurro. Por seu comportamento altivo, sua sensualidade, tão bem definida nos “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, “olhos de ressaca”, a esposa de Bentinho é digna de suspeita. Convencido da traição da mulher, Bento tenta provar que “o futuro estava inevitavelmente previsto no passado, ou seja (na lógica perversa do determinismo), que o efeito é a origem da causa” (MACEDO: 2005, 57). Seu intento se resume em provar que a Capitu adulta – leviana, em sua concepção – já estava contida na Capitu menina “como a fruta dentro da casca”.

Machado parece brincar a todo momento com esse jogo entre ficção e realidade. Prova disso é a construção de seus narradores: o primeiro é um defunto sem grandes realizações, que narra com forte dose de humor suas memórias póstumas; o segundo, onisciente, passeia pelas atitudes e sentimentos das personagens mostrando, não uma visão unilateral da história, mas suas possibilidades; por fim, com Bento Santiago, temos uma narração duvidosa, que objetiva provar a culpabilidade de Capitu e parte, justamente, do homem que se sente por ela traído. Sobre este último, Helder Macedo afirma que “é a grande síntese e a culminação estética da dialética machadiana sobre verossimilhança e verdade, determinismo e responsabilidade, inerente aos dois livros anteriores” (MACEDO: 2005, 57).

Os aspectos aqui observados – poucos, diante da grandiosidade das obras em questão – mostram uma forte preocupação dos autores, tanto no romantismo como no realismo, com a construção da relação entre história e ficção. Alencar, apesar do uso de um tema escabroso para a época (a vida de uma cortesã), dá-nos uma ficção de caráter pedagógico. A mulher prostituída, por mais virgem que mantenha sua alma, não tem direito a um final feliz em vida. Porém, perpassa toda a obra um forte diálogo com a história, com a sociedade de seu tempo, com a crítica literária. Em Machado, a reprodução do que Gledson denominou “realismo enganoso” marca um freqüente diálogo, não só com a história do país, com as falhas sociais, com o ambiente literário, mas com o próprio leitor, num constante jogo de sentidos. Jogo esse que demonstra o quanto são tênues as fronteiras entre o real e o imaginário na literatura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALENCAR, José de. Lucíola. Rio de Janeiro: Ediouro, 29ª ed., 1996.

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Ciranda Cultural, 2ª ed., 2008.

______. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: FTD, 2ª ed., 1991.

______. Quincas Borba. São Paulo: Ciranda Cultural, 2007.

DUMAS FILHO, Alexandre. A Dama das Camélias. Trad. Marina Guaspari. [s.l.]: Abril, s/d.

GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. São Paulo: Paz e Terra, 2003, pp. 13-35.

ISER, Wolfgang. “Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional”. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes. v.2. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983, pp. 384-416.

MACEDO, Helder. “Machado de Assis entre o lusco e o fusco”. In: SARAIVA, Juracy Assmann (org.). Nos labirintos de Dom Casmurro. Porto Alegre: PUC-RS, 2005, pp. 49-69.

RIBEIRO, Luís Filipe. “A virgindade da alma: Lucíola”. In: Mulheres de papel: um estudo sobre o imaginário em José de Alencar e Machado de Assis. Rio de Janeiro: Forense Universitária: Fundação Biblioteca Nacional, 2008, pp. 77-99.

VOLTAIRE. Cândido, ou o Otimismo. Trad. Antonio Geraldo da Silva. São Paulo: Escala, s/d.



[1] Lucíola, de José de Alencar; Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Um comentário:

  1. Texto premiado pelo concurso "Novas vozes, outras letras", da Revista Relevo, com o 1º lugar

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