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"É isso: tudo está ao alcance do homem e tudo lhe escapa, em virtude de sua covardia... Já virou até axioma. Coisa curiosa a observar-se: que é que os homens temem, acima de tudo? 'O que for capaz de mudar-lhe os hábitos': eis o que mais apavora..."

Dostoiévski

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

LITERATURA PORTUGUESA

AMOR DE TRANSIÇÃO:

Traços realistas em A queda dum anjo, de Camilo Castelo Branco

Camilo não vencera o conflito básico de sua concepção e condensação ficcionista da vida: toda a sua ação se trava entre o pecado e a penitência do amor, entre as prepotências de linhagem e o quadro caricatural da sordidez burguesa.

A. Saraiva e O. Lopes

O Romantismo Português, após um período altamente nacionalista, marcado pela obra de nomes como Garrett e Herculano, principia, no contexto da Regeneração, a ceder espaço a uma nova proposta, eminentemente ultrarromântica. É nessa linha que se desenvolve e consagra a novela passional de Camilo Castelo Branco, autor que, tanto em seus romances de cunho trágico como nas sátiras de costumes, refletiu e criticou os valores de seu tempo, bem como os princípios do período literário no qual se inseriu. É em textos como A queda dum anjo (1866), que Camilo demonstra com mais força os primeiros traços de um realismo balzaquiano, que estarão presentes também na obra de Júlio Dinis e, de forma mais desenvolvida, na linguagem e nos temas de Eça de Queirós.

Em A queda dum anjo, destaca-se a figura do anti-herói, representado em Calisto Elói de Silos Benevides e Barbuda, o morgado de Agra de Freimas. Trata-se de um tresmontano de tendência legitimista e afeito à leitura dos clássicos. Casado por conveniência com uma prima, a morgada de Travanca, vive modestamente na província de Miranda, cujo povo, diante da eloqüência e erudição do morgado, elege-o deputado. A chegada de Calisto a Lisboa marca o começo de uma “percuriente sátira da oratória parlamentar regeneradora e da indiferença governativa aos grandes problemas da maioria” (SARAIVA & LOPES: s.d., 825).

O descompasso do morgado torna-o uma figura ridícula para a sociedade lisboeta. Sua insistência na leitura de textos antigos, suas vestimentas ultrapassadas e os valores morais que defende acumulam duas funções na obra: criticar a idealização do passado português e marcar a ascensão de Calisto ao posto de anjo. Os primeiros capítulos do romance estão repletos de uma certa inocência provinciana, que não se deixa abater diante do progresso e da moda e defende-se através da crítica à ordem vigente.

A mulher surge, na narrativa, não mais como objeto de um amor sublime e purificador, mas como elemento provocador da decadência moral e política do “herói”. A paixão de Calisto por Adelaide quebra o paradigma romântico da religião do amor, na qual os jovens amantes são os mártires da tragédia. É, porém, com Ifigênia que o deputado conhecerá o amor e, já não se satisfazendo com o sentimento espiritualizado da novela passional, concretizará seus desejos através de um adultério. Ifigênia, definida pelo narrador como “a mulher-fatal” da história, é o ponto no qual culmina, segundo Regina Michelli, a “falência do Calisto-anjo puro, insensível aos prazeres mundanos, mas já anacrônico” e a “ascensão do Calisto-homem, adúltero, interesseiro, perdulário, mas integrado em uma sociedade cujo comportamento pauta-se, na prática, por esses atributos”.

A paixão em A queda dum anjo não é mais o sentimento sublime que enobrece os protagonistas e eleva-os à condição de heróis. O halo trágico não está mais na impossibilidade da realização pessoal, mas na conformidade com a convenção anteriormente inaceitável. Se na novela passional os amantes são mártires, sacrificados pelas imposições de uma sociedade que nega a concretização de seu amor, na sátira camiliana não encontram dificuldades em concretizá-lo, pois a punição não está no apartamento do casal, mas na conformidade com a corrupção moral e social, o que os leva ao descrédito, como frisa Raquel de Sousa Ribeiro.

Calisto não é o único que se deixa contaminar pelo progresso e pelos costumes de Lisboa. Teodora, que por muitas vezes foi descrita como uma “senhora de raro aviso” (p. 3), “estimabilíssima por virtudes” (p. 45), paga o adultério com a mesma moeda, unindo-se a um outro primo. Dos dois adultérios nascem crianças bastardas, frutos, ao mesmo tempo, da corrupção moral e da libertação das amarras sociais.

O morgado rompe com o código moralizante, adequa-se ao progresso, viaja a Paris e torna-se barão. Há, sem dúvidas, uma evolução do “herói do conto” à medida que ocorre sua integração e a perda do ridículo que caracterizava seu comportamento. Porém, é nessa perda que se caracteriza também a queda da condição de anjo da personagem, pois narrador e leitor sentem a perda do comprometimento, da responsabilidade, enfim, “do que havia de bom e desejável em suas idéias anteriores, em sua crítica à ordem vigente” (RIBEIRO: 1994, 68).

Com uma atenção balzaquiana às circunstâncias e ao comportamento das personagens, Camilo tece uma trama de negação dos paradigmas românticos. A narrativa, apesar de estar inserida na segunda fase do Romantismo português, já apresenta certos traços realistas, fruto da observação e da reflexão sobre uma sociedade resultante de um progresso acelerado. Nesse Portugal já não cabem os heróis e as tragédias ultrarromânticas. É necessário o surgimento de novos heróis ou, antes, anti-heróis que conduzam o pensamento para uma nova visão da sociedade portuguesa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRANCO, Camilo Castelo. A queda dum anjo. Biblioteca Digital: Coleção Clássicos da Literatura Portuguesa. Porto Editora. Online: disponível na internet via virtualbooks.terra.com.br/.../A_Queda_Dum_Anjo.htm

MICHELLI, Regina. “Caminhos da paixão e do amor na Literatura Portuguesa”. In: Soletras, nº 8. Disponível na internet via http://www.filologia.org.br/soletras/8/06.htm.

RIBEIRO, Raquel de Souza. “Camilo Castelo Branco”. In: MOISES, Massaud, dir. A literatura portuguesa em perspectiva: vol. 3, Romantismo e Realismo. São Paulo: Atlas, 1994, p. 62-70.

SARAIVA, António José & LOPES, Óscar. “O Romantismo sob a Regeneração” e “Camilo Castelo Branco”. In: História da literatura portuguesa. Porto: Porto Editora, s/d, p. 783-834.

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