ATENÇÃO

TODOS OS TEXTOS AQUI POSTADOS POSSUEM COMPROVAÇÃO DE AUTORIA!
"É isso: tudo está ao alcance do homem e tudo lhe escapa, em virtude de sua covardia... Já virou até axioma. Coisa curiosa a observar-se: que é que os homens temem, acima de tudo? 'O que for capaz de mudar-lhe os hábitos': eis o que mais apavora..."

Dostoiévski

quarta-feira, 20 de julho de 2011

As questões antropofágica e antropoêmica no conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, de Rubem Fonseca.


Pensando nas questões antropofágica e antropoêmica, podemos ressaltar, no conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, alguns personagens e situações que se encaixam em uma das duas formas. A antropofágica, por exemplo, é definida por Bauman como o “aniquilamento da alteridade, seguido de sua transformação no sentido de fazê-la semelhante” e pode ser relacionada, no conto, à atitude inicial de Epifânio. Este, apesar de desejar viver da escrita, continua trabalhando na companhia de águas e esgotos porque seu amigo João lhe diz que “o verdadeiro escritor não deve viver do que escreve”. Epifânio sufoca seu desejo para seguir uma regra: “não se deve servir à arte e a Mammon ao mesmo tempo” (p. 11). Somente após ganhar um prêmio na loteria, o homem encontra a possibilidade de deixar o emprego e se dedicar integralmente à escrita, assumindo então o nome de Augusto.

Em suas andanças pelas ruas do Rio de Janeiro, Augusto se depara com a Igreja de Jesus Salvador das Almas, que funciona em um cinema. O pastor Raimundo, líder da congregação, emprega todo o seu esforço em cumprir a doutrina da igreja e alcançar as metas estabelecidas pelo bispo. Condiciona seu comportamento à repetição de práticas sugeridas pelo bispo ou imitação de atitudes comuns dos outros pastores bem sucedidos da igreja. Essa relação fica clara na seguinte fala do bispo:

“Cada pastor é responsável pelo templo em que trabalha. A sua arrecadação tem sido muito pequena. Sabe quanto o pastor Marcos, de Nova Iguaçu, arrecadou no mês passado? Mais de dez mil dólares. Nossa igreja precisa de dinheiro.” (p. 39)

Os fiéis também agem por imitação. Para pertencerem ao grupo, modificam seu estilo de vida e passam todos a seguir uma mesma doutrina: “todos os crentes da igreja nunca vão ao cinema, por proibição expressa do bispo, nem para ver a vida de Cristo na Semana Santa.” (p. 13)

A antropoêmica, também está presente no texto de Rubem Fonseca. Em dado momento da narrativa, Augusto se encontra com um grupo de moradores de rua, que rejeitam a denominação “mendigos”. Estes, vivem na calçada do Banco Mercantil do Brasil. O chefe do clã diz a Augusto: “Presta atenção, bacana, a cidade não é mais a mesma, tem gente demais, tem mendigo demais apanhando papel, disputando o ponto com a gente, um montão vivendo debaixo de marquise, estamos sempre expulsando vagabundo de fora.” (p. 34)

A realidade de vida dos mendigos é claramente negada pela sociedade.
Eles vivem diante do Banco Mercantil há dois anos, regulando sua rotina para não atrapalhar o ritmo da rua em dia de expediente: “Nos dias úteis o barraco fica desarmado, as grandes folhas de papelão e a tábua tirada do buraco do metrô são encostadas na parede durante a hora do expediente (...). Mas hoje é sábado, no sábado não há expediente no Banco Mercantil do Brasil, e o barraco de Marcelo e Ana Paula, uma caixa de papelão usada como embalagem de uma geladeira grande, não foi desarmado, e Ana Paula goza desse conforto.” (p. 32)

Os exemplos citados são apenas alguns dentre os muitos que o conto nos apresenta, já que o texto nos dá, através dos encontros de Augusto em seus passeios pelas ruas do Rio de Janeiro, a voz dos excluídos, dos grupos que comumente são esquecidos ou negados pela sociedade. Trata-se, portanto, de um texto no qual as questões antropoêmica e antropofágica podem ser apontadas.

Tendências do contemporâneo em Bolor, de Augusto Abelaira

A leitura de Bolor provoca as mais diversas sensações. Trata-se de um romance capaz de deslocar o leitor de seu lugar-comum e convidá-lo a participar da narrativa, a refletir os elementos do texto e tentar preencher suas lacunas. Como bem afirma André Pereira da Costa, Bolor não é um “romance ingênuo que, mais do que distrair, tranqüiliza o leitor quanto ao seu poder de domínio sobre o mundo” (COSTA, 1982, p.36). O romance vai pelo caminho oposto, enredando o leitor numa teia de perguntas sem resposta, de vozes que se confundem, de datas falsas: “ainda ontem escrevi nove de Abril quando hoje são trinta de Janeiro” (ABELAIRA, 2004, p. 112).

A estrutura do romance já evidencia a ausência de compromisso com eventuais modelos romanescos, o que se dá através de “diversificados experimentalismos” (MAGALHÃES, p. 365), marcas da literatura contemporânea. Temos, em Bolor, a construção de um diário íntimo, apresentado logo nas primeiras páginas da obra por Humberto, o qual se declara “antecipadamente sabedor da inutilidade das linhas” que há de redigir. Ora, se um diário é constituído de uma escrita íntima e pessoal, a “utilidade” do texto que se inicia há de ser a busca do autoconhecimento. Humberto indaga: “Que vou eu escrever – eu, a quem nada no mundo obriga a escrever?” (ABELAIRA, 2004, p.9). A preocupação do narrador com seus futuros textos toma conta do primeiro “capítulo” do diário (11 de Dezembro), o que fica claro na perturbação que Humberto demonstra pela página cento e quinze, “ainda branca, ainda parda”. “Como saber se nela (...) não contarei (não terei contado) coisas de cortar o coração? Sobre mim. Ou sobre o mundo” (idem, p.9) é o questionamento de Humberto. Mas tenhamos sempre em vista a definição de Costa: romance que não tranqüiliza o leitor. A referida página cento e quinze revela a face de um jogo, no qual o tempo não obedece necessariamente a uma linha cronológica:

Sem data

As duas páginas anteriores, e também esta, não foram escritas depois da cento e catorze, como seria lógico, mas em dez de Dezembro. E quando amanhã, (onze de Dezembro) começar este diário cheio de preocupações pelo destino que me aguarda na página cento e quinze, então ainda branca – como hei de escrever –, mentirei escandalosamente. Essa página já não será pertença do futuro, não aguardará um destino imprevisível (coisas de cortar o meu coração e o coração do mundo), estará escrita há vinte e quatro horas, será o passado – foi a primeira deste diário a ser escrita, e esta é a terceira.

O que Abelaira faz aqui é registrar o futuro (a página cento e quinze, que na ordem cronológica deveria ser escrita meses depois da primeira página do diário) como passado, rompendo “com a noção de continuidade que estatui a ordem estanque passado-presente-futuro” (COSTA, 1982, p. 39).

Todo o romance se pauta na ambigüidade, sobretudo no que diz respeito à figura do narrador. Embora o padrão de escrita de um diário requeira a presença de uma única voz – a do autor do diário – a narrativa de Bolor é contituída por três vozes: Humberto, Maria dos Remédios e Aleixo. A “troca de narradores” chega a ser marcada no texto pelas cores de tinta que cada um usa, respectivamente azul, preta e roxa. Porém, ainda segundo Costa, “a ambiguidade que então se instala é de tal forma inextrincável que nem mesmo os dados ‘objectivos’ são capazes de nos conduzir em meio ao labirinto” (COSTA, 1982, p. 36).

Parece-nos, inicialmente, que Maria dos Remédios invade a intimidade do diário do marido, no intuito de encontrar um meio de refletir e discutir a relação de ambos. O casamento, visivelmente desgastado, leva a esposa a questionar Humberto: “Porque não deixamos as canetas, não quebramos o silêncio, mantemos deliberadamente esta ignorância artificial em vez de ousarmos dizer em voz alta o que ousamos escrever em voz baixa?” (ABELAIRA, 2004, p. 38). Maria dos Remédios chega a escrever no diário no mesmo dia que Humberto (16 de dezembro), e afirma: “se é mais difícil pronunciar as palavras do que escrevê-las, por que não tentaste refazer tudo a partir destas páginas?” (idem, p. 45). Porém, no “capítulo” referente ao dia 30 de Janeiro, Humberto faz a seguinte revelação: “Ao menos por instantes, Maria dos Remédios, posso deixar de ser transparente aos teus olhos, basta dizer-lhe que escrevo muitas vezes em teu nome (e no do Aleixo).” (idem, p.112). Logo, há um narrador, Humberto, que assume duas outras vozes, ainda num processo de busca de autoconhecimento, já que a sua própria individualidade não está bem definida. Retomando Costa, pode-se afirmar que Humberto

observa o comportamento dos outros e, principalmente, de Maria dos Remédios e Aleixo – que se tornaram para ele a ‘consciência alheia’, o ‘outro irredutível’ – cuja liberdade é preciso paralisar para que se tornem apreensíveis como objectos. (COSTA, 1982, p. 38)

Isabel Allegro Magalhães, ao tratar do noveu-roman, ressalta determindados aspectos que podem ser observados também na leitura de Bolor, tais como a impossibilidade do ato de narrar, as novas funções do narrador e a ruptura com o padrão burguês na construção dos personagens. No romance em questão, temos um casal que percebe a sua relação como rotineira e desgastada. Humberto chega ao extremo de precisar tirar a esposa do ambiente doméstico para tentar enxergá-la:

– Decidira jantar num restaurante, na companhia da Maria dos Remédios, com a intenção de melhor a ver, de melhor a conhecer, pois em casa ela dissolvia-se no meio da mobília, era um móvel a juntar aos outros móveis, objecto indistinto, objecto de todos os dias. Aqui, mesmo fisicamente, a Maria dos Remédios avultava entre as outras coisas, precisamente porque as outras coisas, ainda não vencidas pelo hábito, também se tornavam visíveis, cheias de pormenores. Impossível não dar pela Maria dos Remédios. (ABELAIRA, 2004, p.69)

Trata-se de um casamento que foge claramente ao padrão burguês. O marido não enxerga a esposa e precisa levá-la a uma restaurante para poder vê-la melhor. Humberto e Maria dos Remédios sentem sua relação desgastada pela rotina e estão em constante questionamento. Ambos buscam em relações extraconjugais aquilo que seu parceiro não pode dar, já que ninguém pode dar tudo a alguém. A pergunta feita pela esposa, ainda no início da narrativa – “Costumas pensar muitas vezes na Catarina?” –, impulsiona Humberto a pensar seu relacionamento e seu comportamento a partir da figura dessa outra mulher. E é pensando nela que revela todo o desgaste de seu casamento, numa passagem em que Catarina e Maria dos Remédios se confundem – “Ouso escrever pela primeira vez: quando a Catarina morreu não senti grande pena” (idem, p. 29). E mais: “Sentia-me morto, ali ao lado da Catarina, mas prestes a renascer” (idem, p. 29). A morte de um dos parceiros é condição para a transformação, a ressurreição do outro. Humberto acrescenta ainda: “se a Maria dos Remédios morresse? Por que ela não morre?” (idem, p. 31).

É a inquietação diante de sua relação que move a criatividade de Humberto na construção do diário. Na passagem referente ao dia 9 de Janeiro, o narrador questiona: “Em nome de quê tenho eu selecionado o que escrevo?” (idem, p. 33). Voltamos aqui à questão inicial: a “finalidade” do diário. Ao tentar perceber a Maria dos Remédios – apreender a existência da esposa – Humberto se lança numa busca pela singularidade. Já no dia 12 de Abril, pela voz de Maria dos Remédios, encontra-se a seguinte observação: “Peguei na caneta, escrevi eu..., mas depois decidi que o sujeito da frase, de todas as frases, deveria ser nós” (idem, p. 120). Maria dos Remédios e Catarina, Humberto e Aleixo, o nós dessa narrativa, ao mesmo tempo em que parecem faces diversas de uma única dupla de personagens – Julieta e Daniel – revelam-se como um nós inalcançável, “ainda sem corpo, ainda isolado”. Cabe ressaltar a indagação que se segue, sobre esse nós: “Seria possível dar-lhe vida, procurar-lhe o corpo que nunca chegara a ter?” (idem, p. 120). Essa frese revela novamente a ambiguidade do sujeito, na qual se pauta o romance.

Bolor se revela como uma narrativa sem uma intriga aparente. Toda a ação se dá com e pela linguagem, num processo em que a escrita cria a ação. Abelaira nos dá, através desse romance, um texto no qual a ausência de intriga e a impossibilidade de se afirmar um sujeito narrador são o pano de fundo de uma forte reflexão sobre o processo de construção da própria escrita, pautado na ambiguidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ABELAIRA, Augusto. Bolor. Lisboa: Editorial Presença, 2005.

COSTA, André Pereira da. Bolor: a ambigüidade procurada. In: Revista Colóqui/Letras. Ensaio, nº 68, Jul. 1982, p. 35-41.

MAGALHÃES, Isabel Allegro. Ficção anos 60. In: História da Literatura Portuguesa: as correntes contemporâneas.

domingo, 6 de março de 2011

Literatura Infanto-juvenil

Uma análise do conto Barba Azul, de Charles Perrault, segundo o esquema básico de Vladimir Propp

Este trabalho tem por objetivo estudar os aspectos do conto “Barba Azul”, de Charles Perrault, partindo das personagens principais – o vilão e a heroína. Como Vladimir Propp “foi o primeiro a tentar descobrir a estrutura do conto a partir do estudo da forma (...) e fundar assim a especificidade do gênero (...)”, pretende-se, nessa análise, aplicar ao conto escolhido o seu esquema básico.

Propp, ao levantar o esquema básico do conto russo, estabeleceu 31 funções, que seriam a base dessas histórias. Mas nem todos os contos apresentam necessariamente todas as 31 funções listadas. Em “Barba Azul”, pode-se notar a presença de várias delas, como veremos a seguir.

Propp denominou situação inicial o momento da história em que são apresentados os personagens principais. É também a sugestão de um tempo e espaço indeterminados, geralmente marcados pela expressão “Era uma vez...”. A situação inicial de “Barba Azul” apresenta ao leitor o vilão e sua futura vítima: Barba Azul, um homem solteiro e muito rico, manifesta interesse em se casar com uma das filhas de sua vizinha, uma “aristocrata de alta estirpe”. Há, porém, além da barba azul do pretendente, um outro forte motivo para a recusa das jovens cobiçadas: Barba Azul, “segundo se dizia, casara-se várias vezes e ninguém sabia que fim levaram suas mulheres” (p. 114). Aqui, pode-se apontar a função denominada interdição, pois o desaparecimento misterioso das esposas anteriores do homem funciona como um alerta de perigo, tanto para a futura vítima quanto para o leitor.

A função que possibilita a aproximação da futura vítima com o leitor é a transgressão. No conto em questão, as jovens, mesmo cientes do passado obscuro de seu pretendente, aceitam seu convite para passar uma semana em uma de suas casas de campo. Divertem-se tanto que a irmã mais nova, iludida pelo luxo, acaba aceitando se casar com o vilão. A menina abre mão do bom-senso e se deixa conquistar pelo adversário. Assim, cumprem-se mais duas funções designadas por Propp – o logro e a cumplicidade. O “agressor” engana a vítima, iludindo-a com “festas, bailes, pequeniques, caçadas, pescarias e jogos” (p. 114). Esta, por sua vez, deixa-se enganar e “conclui com o Agressor um pacto que resultará em dano próprio”: o casamento (PORTELA, 1976: 133).

Com o casamento, a moça vai viver com o marido, afastando-se da proteção da família. Tal passagem do conto pode ser identificada com a função da ausência, pois o fato de estar sozinha com Barba Azul revela uma situação de ameaça, de perigo. Há um momento em que o vilão se afasta para uma viagem de negócios, deixando a esposa sozinha com a irmã mais velha. O marido, porém, faz um teste com a moça: entrega-lhe um molho de chaves, dentre as quais há uma que jamais deverá ser usada, sob pena de despertar a sua ira. Podemos ver essa restrição como uma nova interdição, desta vez vinda diretamente do agressor. A jovem esposa se esforça para manter sua palavra, mas a curiosidade feminina fala mais alto e a leva a uma nova transgressão. Ela vai até o fundo da galeria e abre a porta proibida, descobrindo os corpos degolados das esposas anteriores de Barba Azul. Há, com essa descoberta, o rompimento do equilíbrio, o que pode ser associado à função do dano e/ou carência. Antes de sair da sala, deixa a chave proibida cair no chão. A queda gera uma reveladora mancha, que a menina não consegue remover. Essa mancha funcionará como a denúncia da transgressão.

A chave, nas histórias de amor, costuma assumir conotações românticas. Aqui, porém, ela simboliza o proibido e encerra a prova da transgressão. Barba Azul regressa inesperadamente e confronta a esposa. Esta, nervosa, entrega-lhe a chave com a mancha denunciadora. Ao se certificar da traição, o marido revela que a desobediência da esposa será paga com a vida, e pega a espada para degolá-la. Ela, porém, pede um tempo para rezar antes de morrer, e o vilão o concede. É nesse momento que se dá a mediação, pois a moça volta para o seu quarto, conta toda a história à irmã e pede ajuda. A irmã mais velha age, nesse conto, como uma espécie de doador, pois auxilia a heroína no momento de suspense e luta.

A única solução encontrada pelas irmãs é aguardar os irmãos mais velhos, que haviam prometido uma visita para aquele dia. Enquanto a mais velha observa, no alto da torre, a estrada na qual chegariam os salvadores, a esposa de Barba Azul aguarda, amedrontada, a chegada do marido, que sobe as escadas para degolá-la. Esse é um momento de forte suspense no conto, que culmina na luta – o confronto entre o vilão e a heroína, quando ele finalmente se aproxima dela e se prepara para matá-la. É a irmã mais velha quem vê a aproximação dos salvadores e acena para eles, pedindo por socorro. Quando o vilão está prestes a degolar sua vítima, os irmãos da heroína adentram o aposento e matam o malfeitor. Nesse trecho ocorre a função da vitória, que é o momento em que o agressor é vencido pelo herói.

Outras funções levantadas por Propp podem ser identificadas no desfecho do conto, como o reconhecimento, a descoberta, a transfiguração, o castigo e o casamento. O vilão é desmascarado e morto. A jovem viúva herda toda a fortuna do falecido marido e a gasta com a irmã, os irmãos mais velhos, e o segundo marido.

No conto analisado, a personagem principal é o vilão, Barba Azul. Este apresenta uma certa dualidade, pois, apesar de toda a riqueza que possui e de seus bons modos, possui também uma característica física incomum – a barba azul – e um aspecto não resolvido do passado – o desaparecimento das esposas. O luxo e os galanteios são recursos do vilão para se aproximar da vítima e conquistá-la. Depois de casado, submete a esposa a um teste letal: entrega-lhe a chave proibida, já na esperança de que ela o desobedeça. Trata-se de um vilão com aspectos de serial killer, possivelmente inspirado em casos reais, pois

Segundo alguns estudiosos o criador de Barba Azul se inspirou no fidalgo francês Gilles de Rais, que no século XV exterminou dezenas de crianças com requintes de perversidade. Para outros, o modelo da personagem foi Henrique VIII, soberano inglês que se casou seis vezes e mandou matar duas de suas mulheres. E outros ainda optam pelo bretão Comorre, o Maldito, que no século VI assassinou quatro esposas grávidas; a quinta, Tryphine, escapou e denunciou.

(PHILIP, 1998: 115)

O conto parece conter um caráter pedagógico, no sentido de orientar as moças a uma reflexão maior na escolha de seu futuro marido. O quarto onde estão pendurados os corpos das esposas de Barba Azul representa o horror que permanece escondido na beleza da propriedade do vilão. É mais uma forma de reforçar que as aparências enganam. Há também a questão da curiosidade: se a jovem esposa não se entregasse ao desejo de transgredir a ordem do marido, não seria condenada à morte. Os grandes heróis da história são os irmãos da vítima, que exercem seu papel de irmãos mais velhos, matando o opressor da jovem. Isso pode ser visto como um alerta para que as jovens respeitem seus irmãos mais velhos, que devem zelar por sua honra e integridade.

Como foi dito anteriormente, nem todas as funções levantadas por Vladimir Propp foram identificadas no conto “Barba Azul”. Porém, pela análise realizada, pode-se notar a validade e a importância do esquema básico de Propp.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PERRAULT, Charles. “Barba Azul”. In: Volta ao mundo em 52 histórias. Tradução de Hildegard Feist. Narração: Neil Philip. São Paulo: Cia das Letrinhas, 2005, pp. 114-117.

PORTELA, Eduardo e outros. Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976.

Modernismo:

Análise do conto Lisetta, de Alcântara Machado

Brás, Bexiga e Barra Funda é uma obra que, através de contos leves, apresenta um olhar sobre um aspecto do cotidiano paulista da década de 20 – o dia-a-dia dos imigrantes e descendentes de italianos. No prefácio do livro, intitulado “Artigo de Fundo”, o autor define os textos que compõem o trabalho:

Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram notícias. E este prefácio, portando, também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo.

(MACHADO, p.3)

Tal afirmação já demonstra a transposição de cenas do cotidiano para a obra literária, aspecto que marcou a produção do livro em questão. Os contos tem seu conteúdo marcado por episódios de rua, cenas do cotidiano pobre de São Paulo. Ainda no “Artigo de Fundo”, Machado explica a importância dos imigrantes italianos na construção da identidade do país e, sobretudo, da cidade de São Paulo. Esse é o ponto norteador deste livro, como o próprio título já denuncia – Brás, Bexiga e Barra Funda são bairros de São Paulo que são conhecidos, até hoje, por carregarem a tradição italiana. Nas palavras de Bosi:

Voltado para a vida da sua cidade, Alcântara Machado soube ver e exprimir as alterações que trouxera à realidade urbana um novo personagem: o imigrante. O enxerto que o estrangeiro, sobretudo o italiano, significava para o tronco luso-tupi da antiga São Paulo produzira mudanças de costumes, de reações psicológicas e, naturalmente, uma fala nova a espelhar os novos conteúdos.

(BOSI, 2006: 374)

No conto “Lisetta”, pode-se notar vários aspectos da modernidade da obra de Alcântara Machado. O texto é muito curto, possui linguagem simples e aborda um tema comum, uma cena corriqueira do cotidiano:

Quando Lisetta subiu no bonde (o condutor ajudou) viu logo o urso. Felpudo, felpudo. E amarelo. Tão engraçadinho.

Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pé diante dela.

Lisetta começou a namorar o bicho. (...)

(MACHADO, p.25)

Os aspectos ressaltados acima conferem à obra um caráter de notícia, de relato de um acontecimento comum. O ambiente onde se passa boa parte do enredo é um bonde, ou seja, um transporte coletivo. É um local onde se pressupõe a presença de várias pessoas, pertencentes a diferentes “níveis” sociais. O bonde está em movimento durante toda a cena que Lisetta protagoniza com o urso, o que reforça o caráter corriqueiro do enredo e o aproxima da notícia, de acordo com a definição dada pelo próprio autor no prefácio. O texto se encaixa no objetivo de “fixar tão-somente alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana desses novos mestiços nacionais e nacionalistas. É um jornal. Mais nada. Notícia. Só". (MACHADO, p. 4-5). Dessa forma, Machado segue os passos de Oswald de Andrade e Juó Bananere, pioneiros da crônica de imigração na imprensa paulista.

Outro aspecto interessante é a condição social das personagens principais. Lisetta e sua mãe são pobres, o que fica explícito nas seguintes passagens do texto:

Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pé diante dela.

(...)

Lisetta como compensação quis sentar no banco. Dona Mariana (havia pago um passagem só) opôs-se com energia e outro beliscão.

(MACHADO, p.27)

É a impossibilidade de ter um urso como o da menina rica que faz com que Lisetta o deseje com tanta força. Ela fica encantada quando vê o urso sentado “no colo da menina de pulseira de ouro e meias de seda” (p. 25). Esta, notando a inveja da menina pobre, decide provocá-la, exibindo o brinquedo.

A linguagem é outro ponto de destaque do texto, pois é usada de forma dinâmica e visual. O narrador não privilegia a norma culta e seu discurso tem um tom natural e conciso. O autor evita fazer digressões discursivas, pois estas quebrariam o ritmo da narrativa. A história é narrada de forma simples e a linguagem está mais próxima da crônica que do conto. Vale ressaltar a forte presença de expressões italianas e da modalidade informal da língua, sobretudo nos diálogos:

Hã! Hã! Hã! Hã! Eu que...ro o ur...so! O ur...so! Ai, mamãe! Ai, mamãe! Eu que...ro o... o... o... Hã! Hã!

— Stai ferina o ti amazzo, parola d'onore!

— Um pou...qui...nho só! Hã! E... hã! E... hã! Um pou...qui...

Senti, Lisetta. Non ti porterò più in città! Mai più!

(MACHADO, p.26)

As falas da mãe de Lisetta apresentam uma mistura do português com expressões italianas, o que era comum dentre os imigrantes e seus descendentes. Já as falas da menina, tentam se aproximar da linguagem da criança, apresentando muitas palavras no diminutivo e o vocativo “mamãe” no final das frases: “Olha o ursinho que lindo, mamãe!

Lisetta é uma menina pobre que vê no urso da menina rica um objeto de desejo. Sua necessidade, porém, não é compreendida pela mãe. O adulto não consegue compreender o sofrimento da criança e, na ânsia de diminuir o escândalo causado por esta, acaba gerando mais sofrimento, castigando e humilhando.

Pode-se notar também a preocupação do autor em delimitar o tempo e o espaço da narrativa na seguinte passagem do conto:

Lisetta sentia um desejo louco de tocar no ursinho. Jeitosamente procurou alcançá-lo. A menina rica percebeu, encarou a coitada com raiva, fez uma careta horrível e apertou contra o peito o bichinho que custara cinqüenta mil-réis na Casa São Nicolau.

(MACHADO, p. 26)

Ao citar o valor do objeto de desejo de Lisetta e indicar o local da compra, uma conhecida loja da época, o autor reforça a contemporaneidade da obra.

Lisetta faz um verdadeiro escândalo no bonde, na esperança de obter a permissão de tocar no urso. A mãe, muito irritada, pede desculpas à mãe da menina rica e castiga a filha com beliscões. A dona do urso, mesmo depois de descer do bonde, continua a provocar Lisetta, erguendo-o para que a menina visse. Trata-se aqui de uma visão não-idealizada da criança. Temos uma menina que inveja o urso da outra e o deseja tanto que acaba fazendo uma cena ridícula em um transporte coletivo. De outro lado, temos uma menina que sente prazer em exibir para Lisetta o objeto que esta deseja e não pode possuir. Essa visão sobre a criança fica clara também em outras passagens do texto, como a descrição dos irmãos de Lisetta: “O resto da gurizada (narizes escorrendo, pernas arranhadas, suspensórios de barbante) reunido na sala de jantar sapeava de longe” (MACHADO, p. 27).

Em casa, Lisetta sofre mais castigos, até que recebe de Ugo um presente – um ursinho de lata. Repleta de alegria, a menina pega o urso e, aos berros, tranca-se no quarto.

Todo o conto é trabalhado de forma simples, com personagens comuns e situações próprias do cotidiano paulista da década de 20. O bonde, um dos símbolos do progresso, tão forte na época, tem destaque no texto. O autor opta pela síntese para desenvolver um texto dinâmico e curto, o que é bem diferente do estilo das escolas anteriores – romântica e parnasiana. Não é à toa que Alfredo Bosi se refere a Machado como “O prosador do Modernismo paulista”. Segundo Bosi, “foi Antônio de Alcântara Machado quem por primeiro se mostrou sensível à viragem da prosa ficcional, aplicando-se todo a renovar a estrutura e o andamento da história curta” (BOSI, 2006: 374).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006).

MACHADO, Antônio de Alcântara. Brás, Bexiga e Barra Funda. Online: disponível na internet via http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bi000005.pdf

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

"Os eleitores são os palhaços"

A cada quatro anos, milhões de brasileiros vão às urnas escolher os seus representantes, que governarão o país. E, em todo ano de eleição, as características são sempre as mesmas: candidatos cheios de boas intenções, prometendo melhorar a vida de todas as pessoas, distribuindo abraços e posando para fotos. Só que tudo isso acaba quando eles são eleitos. Se esquecem completamente daqueles que os colocaram no poder.
Nessas eleições um fato teve grande repercusão e gerou uma série de críticas. Francisco Everaldo Oliveira Silva, o palhaço Tiririca, foi eleito deputado federal com mais de um milhão e quinhentos mil votos. Foi o segundo maior número da história. Durante sua campanha ele usou o 'slogan': "Vote no Tiririca, pior do que tá não fica". "Palhaçada"? Não. Realidade.
O atual cenário político brasileiro é marcado por esquemas de corrupção e por governos ineficientes, que muito pouco fazem para melhorar a condição de vida da população. E, a cada gestão, a situação se torna pior, fazendo com que as pessoas acreditem sempre menos nos políticos e almejem por mudanças. Foi justamente o que ocorreu nessas eleições.
Enquanto a maioria dos candidatos se preocupou em fazer belos discursos e incontáveis promessas, Tiririca foi sincero ao se mostrar totalmente inexperiente para ocupar o cargo de deputado e também ao criticar o sistema. Essa postura sincera foi o que fez a diferença nas urnas. As suas piadas durante as propagandas eleitorais não enganaram ninguém e a população soube reconhecer isso. Os eleitores enxergaram que eles eram os palhaços para aqueles políticos que iludem a todos com uma boa oratória mas que, na verdade, riem nas suas costas.
A crescente participação de candidatos inusitados e o uso do humor em suas campanhas são formas de criticar os atuais governantes e o sistema político brasileiro. A eleição de Tiririca confirma o descontentamento da população com os candidatos que se comportam de maneira séria na frente dos eleitores e que, no entanto, fazem de seus governos verdadeiros circos.

Marcus Dutra, 17 anos, Monte Santo de Minas-MG

RESUMO: Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett

VIAGENS NA MINHA TERRA

Almeida Garrett

CONSIDERAÇÕES SOBRE A OBRA:

v Viagens na minha terra foi publicado nos anos de 1843 e 1846, na Revista Universal Lisboense.

v A narrativa se desenvolve em dois planos: o primeiro é a viagem – real e simbólica – que Garrett faz até o vale de Santarém; o segundo é a novela “A Menina dos Rouxinóis”, que passa a ser contada a partir do capítulo X.

v “Estabelecendo-se a relação entre a novela e o restante da obra, observa-se que a intenção de Garrett, em Viagens na minha terra, é servir-se de um diálogo crítico e, através dele, apontar as causas que conduziram o país a uma crise cada vez mais aguda”.*

v “Instrumento para a reflexão de seu autor, as Viagens não só modernizam a prosa portuguesa, extirpando-lhe os vícios retóricos da grandiloquência, como também traz em seu bojo a marca de uma lúcida consciência dos problemas que afligem seu país”.*

v A novela atua como metáfora do sentido da própria viagem. Assim, seus personagens possuem caráter simbólico na narrativa:

PERSONAGENS DA NOVELA:

CARLOS E FREI DINIS

Pai e filho representam D. Quixote (espiritualismo) e Sancho Pança (materialismo) em fases diferentes de suas vidas. Frei Dinis é, inicialmente, materialista. Somente diante do remorso pelo pecado cometido espiritualiza-se, tornando-se um frade austero. Carlos, ao contrário, luta pelos ideais do liberalismo e, depois de descobrir que é filho do frade, foge e se torna barão (materialista). Por isso, Helder Macedo afirma que estes personagens são “espelhos, imagens inversas um do outro”.

JOANINHA E GEORGINA

Representam o ideal moral positivo. Segundo Helder Macedo, Joaninha seria a essência do bem inerente às sociedades tradicionais – o arquétipo de Portugal – e Georgina, a essência do bem inerente às “sociedades modernas – arquétipo do progresso no século XIX que era a Inglaterra do liberalismo triunfante”.

DONA FRANCISCA

Representa Portugal e “indica a imprudência com a qual o liberalismo foi assumido em Portugal: graças à falta de visão dos defensores do liberalismo, o país, impotente, assiste a sua destruição”.*

*MOISÉS, Massaud (dir.). A literatura portuguesa em perspectiva: Romantismo e Realismo. vol. 3. São Paulo: Atlas, 1994, pág. 40.

MOISÉS, Massaud (dir.). A literatura portuguesa em perspectiva: Romantismo e Realismo. vol. 3. São Paulo: Atlas, 1994, p. 39.

O LIVREIRO DE CABUL: uma análise antropológica

Ao ir embora, disse a mim mesma: isto é o Afeganistão. Seria interessante escrever um livro sobre esta família. (Asne Seierstad)

Eu me pergunto se Asne Seierstad é cega (...) Seus olhos europeus não conseguiram ver o que está acontecendo à esquerda e à direita?

(Shah Muhammad Rais)

1- Tema, métodos e objetivos da pesquisa:

O trabalho antropológico pode ser resumido como uma tentativa de compreender e fazer compreender a lógica interna de determinada sociedade ou grupo. Para tal, realiza-se, na maioria dos casos, o que se denomina trabalho de campo. Este consiste em um período de convivência do etnólogo com o grupo a ser estudado.

Malinowski (1978) afirma que o antropólogo deve observar atentamente a vida dos ‘nativos’ – como denomina os pertencentes ao grupo estudado – e registrar fielmente tudo o que for contemplado em campo, bem como as histórias, fictícias ou não, que lhe forem relatadas. O resultado da pesquisa de campo é a etnografia, um texto que relata o modo de vida dos nativos, a compreensão do etnólogo sobre ele e a explicação deste sobre a lógica dos costumes, pensamentos e atitudes nativas.

O texto que se segue não se trata de uma etnografia propriamente dita, mas de uma discussão acerca da pesquisa publicada em livro pela jornalista norueguesa Asne Seierstad. Seu livro, O livreiro de Cabul, gerou polêmica em todo o mundo e ganhou uma resposta a altura. Trata-se de Eu sou o livreiro de Cabul, escrito por Shah Muhammad Rais, o livreiro cuja família foi estudada e descrita por Asne.

Baseada nas discussões das aulas de Antropologia Cultural do semestre que se encerra, proponho-me a discutir, nesta redação, a relação entre a pesquisa de Seierstad e o fazer antropológico. Pretendo, também, discutir os métodos utilizados pela autora e as afirmações feitas por ela em seu livro, contrastando-as com a bibliografia do curso e com a versão de Shah Muhammad Rais.

2- O livreiro de Cabul: romance, jornalismo ou etnografia?

Asne Seierstad é jornalista e recebeu muitos prêmios por seu desempenho profissional. Dentre eles, pode-se destacar o Grande Prêmio Norueguês de Jornalismo, em 2003. Mas seu verdadeiro sucesso começaria durante uma reportagem no Afeganistão, quando conheceria o livreiro que mudou sua vida. Trata-se de Shah Muhammad Rais, o Sultan Khan de O livreiro de Cabul.

Foi na livraria no centro de Cabul que conheceu o “patriota afegão, muitas vezes decepcionado com seu próprio país” (SEIERSTAD, 2009:7). Em meio a livros e conversas, uma amizade se inicia e, com ela, a ideia que lhe poria fim: Asne decide escrever um livro sobre a “família Khan”.

A pesquisadora é bem recebida na família do livreiro e lá permanece, por cinco meses, coletando material para seu livro. Nesse tempo, assume a posição de um antropólogo, pois sua função é ver, ouvir e registrar o maior número possível de fatos relevantes para serem apresentados à comunidade europeia.

Assim como o antropólogo, a jornalista se prepara para a pesquisa de campo, levando computador, blocos de anotações, canetas, celular, etc.. Passa, também, por dilemas de antropólogo, como na dificuldade em registrar tudo o que vê e ouve e na difícil comunicação com seus “nativos”. Observemos os seguintes trechos da obra:

Contavam-me coisas quando tinham vontade, não quando eu perguntava. Não era necessariamente quando eu estava com o bloco de anotações a postos que eles estavam a fim de falar; podia ser durante uma ida ao bazar, num ônibus, ou talvez tarde da noite, deitados no tapete.

(...) Eu não dominava o dari, dialeto persa falado pela família Khan, porém, vários membros da família sabiam falar inglês. (SEIERSTAD, 2009:9)

Podemos relacionar o trabalho de Asne Seierstad com as funções definidas por Roberto Cardoso de Oliveira em seu texto “O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever”. Ao penetrar numa cultura extremamente diversa da sua e expor seus costumes e, o mais importante, sua visão de mundo, Seierstad se propõe a elaborar um trabalho que se encaixa nos moldes antropológicos.

O antropólogo, porém, deve estar alerta. Ao adentrar um grupo de estudo, o pesquisador já tem concepções preestabelecidas sobre esta ou aquela atitude de seus informantes. Mas o trabalho do etnólogo é justamente explicar a lógica do sistema estudado, ou seja, tentar enxergar o mundo pelo ponto de vista do nativo. E, neste ponto, a jornalista norueguesa deixa a desejar.

Logo no início de seu livro, Asne afirma que sua obra é um misto de ficção e realidade, e que não se propõe a estudar uma típica família afegã, mas sim uma família incomum para a sociedade na qual se insere. Em seu texto, porém, a autora não deixa claro quais são os pontos ficcionais e quais são os reais, além de dar maior ênfase a questões como o tratamento às mulheres, o sistema de casamentos e o conflito dos jovens, deixando de lado os traços distintivos da “família Khan”.

As histórias relatadas pela jornalista levam o leitor a uma complexa reflexão acerca da cultura muçulmana. Entretanto, a autora não se compromete a explicar os propósitos deste ou daquele costume, fazendo de seu texto uma mera reprodução do senso comum. O que marca sua obra é justamente aquilo que denominou caráter ficcional, ou seja, a forma romântica[1] com que trata os conflitos pessoais de suas personagens reais, muitas vezes trazendo fatos ou sentimentos que não correspondem à realidade do que foi pesquisado, como acusa Rais.

Para melhor compreendermos a proposta de Seierstad e seus pontos falhos, analisemos mais detalhadamente sua obra.

2.1- Em defesa da mulher!

Sem dúvidas os costumes e tradições muçulmanos chocam os ocidentais no que toca ao tratamento às mulheres. Não é difícil para uma mulher ocidental sentir-se revoltada mediante questões como o uso do véu e da burca, a passividade da mulher na negociação do casamento, a total submissão ao marido, dentre outras polêmicas da cultura afegã. Asne Seierstad também não se calou diante de tais costumes.

O livreiro de Cabul dá um espaço privilegiado à mulher, tornado-a protagonista de um drama nacional, porta-voz de uma sociedade injusta. Assim, Seierstad descreve a sofrida trajetória de suas mulheres/personagens. Observemos como a autora define algumas delas:

Sharifa: É a primeira esposa do livreiro, rejeitada aos cinqüenta anos, quando o marido resolve procurar uma segunda esposa “que o mantenha jovem”.

Sonya: É a pobre eleita para ocupar o cargo de segunda esposa de “Sultan Khan”. Segundo Asne, a menina se casa aos dezesseis anos, contrária à sua vontade. “Sulthan” também teria subornado o pai da moça para poder dormir com ela antes do casamento, com o intuito de prepará-la para a noite de núpcias.

Leila: O retrato da maltratada e submissa menina afegã. Ainda solteira aos dezenove anos, é a “criada” da casa.

Saliqa: Menina que comete o delito de receber cartinhas de um admirador secreto e é duramente castigada pela família.

Seierstad quase faz de seu texto um tratado de defesa às mulheres. Não digo, aqui, que esteja errada, mas que foge, de certa forma, à proposta antropológica. No impulso de denunciar o que, para ela, seria uma injustiça, a jornalista acaba perdendo o foco de sua pesquisa e lançando mão de recursos não muito éticos.

A autora sabia, a todo instante, que não estava lidando com personagens fictícios. Mesmo assim, relata situações constrangedoras com precisão e, em alguns casos, segundo Rais, insere elementos ficcionais que comprometem a credibilidade da família.

Ao relatar o episódio de Saliqa, por exemplo, Asne revela a intimidade de uma jovem afegã, comprometendo sua reputação. Dentro da tradição afegã, uma moça que troca bilhetes de amor com um desconhecido não merece respeito. Menos ainda uma jovem que mantenha relações sexuais com o noivo antes do casamento, como foi dito de Sonya. Os pseudônimos dados pela autora não dão conta de proteger a identidade das mulheres em questão – afinal, ela está se referindo à família do maior livreiro de Cabul.

Em Eu sou o livreiro de Cabul, Shah Muhammad Rais condena tal atitude da jornalista, dizendo que “em sua ignorância, Asne Seierstad omite a catastrófica realidade dessas mulheres; ela ilude as pessoas de todo o mundo quando as leva a acreditar que homens como 'Sulthan Khan', e não os soldados russos, o Talibã, a al-Qaeda e todos os anos de guerra civil são os culpados pela sua desgraça”. Segundo o livreiro, Asne erra ao dizer que as mulheres afegãs são reprimidas, porque, na verdade, elas são protegidas. Ele explica que na cultura afegã a mulher é tão preciosa que deve ser guardada. Por isso, protegem seus rostos e corpos da volúpia masculina, com véus e burcas.

Outro ponto discutido por Rais é a posição de Seierstad quanto ao casamento nos moldes afegãos. Segundo a autora, o casamento pouco tem a ver com amor e este pode até ser interpretado como um crime grave, passível de punição com a morte. Ainda assim, relata vários episódios amorosos de mulheres e moças, comprometendo-as socialmente. Além disso, em seu livro, Rais nos dá a explicação lógica que faltou no texto da norueguesa sobre o esquema do casamento no Afeganistão. Para ele, não se trata de uma negociação, mas de uma demonstração de desejo, respeito e poder, representada no dote. Explica também que a noiva não é obrigada a aceitar o noivo escolhido pelos pais e, se o faz, é porque acredita que estes sabem o que é melhor para ela.

O que faltou a Asne foi relativizar as questões que, para ela, já estavam tão definidas como erradas ou absurdas. O único momento em que tentou enxergar o mundo pela perspectiva de uma mulher afegã foi ao descrever o uso da burca. Mas, ao que parece, não conseguiu chegar à conclusão de que sua compreensão ocidental do modo de vida daquelas mulheres jamais poderia ser comparada à visão de quem está dentro do sistema, e o sente na própria pele.

2.2- Realidade x ficção:

Como já foi mencionado, a própria autora assume ter mesclado elementos fictícios aos fatos reais colhidos em sua pesquisa. Porém, além de confundir o leitor por não explicitar as fronteiras da realidade em seu texto, Seierstad transforma seus informantes em personagens de um romance, atribuindo-lhes os sentimentos que considerar relevantes a cada discussão.

Desse modo, podemos observar o caráter dual que Rais – ou Sulthan Khan – apresenta na narrativa da jornalista. O livreiro é descrito ora como um homem esclarecido e liberal, ora como o tirano senhor da família Khan. Sobre esse ponto, Rais diz: “Da forma como sou descrito por Asne Seierstad, o título de seu livro devia ter sido O carniceiro de Cabul.”

Da mesma forma, atribui ao filho mais velho de Rais, “Mansur”, um caráter duvidoso e pensamentos libidinosos que envergonhariam qualquer muçulmano. Mais uma vez, o livreiro contra-ataca, dizendo: “Quando isso for lido no Afeganistão, meu filho não terá mais lugar na sociedade, será estigmatizado como um homem indigno que vive pensando em molestar meninas de rua”.

Outra vítima da implacável mão da jornalista é a irmã mais nova do livreiro, “Leila”. A moça é transformada, na obra de Seierstad, em símbolo da opressão feminina. É a Cinderela que sonha deixar a casa do irmão malvado para se casar com um homem que a respeite. Mas, no final das contas, acaba prometida a um noivo que jamais lhe dará valor.

Ao confundir realidade e ficção, moldando os fatos a seu critério, Asne Seierstad age de forma etnocêntrica, segundo a qual, como diz Everardo Rocha, “nosso grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência” (ROCHA, 1988:7). Asne pensa e sente a cultura afegã a partir de seus próprios padrões, construindo um texto mais voltado para o entretenimento que para fins antropológicos.

Ainda segundo o supracitado autor, “Na nossa chamada “civilização ocidental”, (...) existem diversos mecanismos de reforço para o seu estilo de vida através de representações negativas do outro” (ROCHA, 1988:15). Infelizmente, é o que podemos encontrar na obra da norueguesa. Ao condenar o uso de véus e burcas pelas mulheres mulçumanas, Seierstad defende que se vistam segundo padrões ocidentais. Defende também que os jovens tenham liberdade para fazer o mesmo. Mas, seria mesmo condenável a relutância na adoção de um modelo de vida produzido por outra cultura, que segue outra religião e acredita em coisas diferentes? Estariam os muçulmanos errados em tentar manter a sua tradição? Essa resposta Asne Seierstad não nos dá.

3- Nem tudo são espinhos:

Devemos ter a clareza de ressaltar que nem tudo são espinhos na obra de Seierstad. Em certos pontos, a autora deu conta da proposta antropológica, revelando-nos características para muitos desconhecidas da cultura afegã. Essas características estão relacionadas à sexualidade, tema polêmico em se tratando de islamismo.

A jornalista relata que a sexualidade está presente em diversas lendas e poesias afegãs. Conta também que muitas mulheres mantem relações secretas com homens e que, após a queda do Talibã, muitos policiais fazem vista grossa aos amantes. Outro ponto interessante é a disseminação do homossexualismo masculino no sudeste do Afeganistão. Essas relações se dão, principalmente, entre experientes comandantes e jovens soldados do exército. Segundo Seierstad,

Os comandantes não vivem apenas sua homossexualidade, a maioria tem esposa e um monte de filhos. Mas raramente estão em casa e passam a vida entre homens. Sempre há grandes dramas de ciúmes entre esses jovens amantes, não são poucas as vinganças mortais já encenadas por ciúme de um amante que se dividiu entre dois comandantes. (SEIERSTAD, 2009: 251).

4- Considerações finais:

O livro de Asne Seierstad, como já foi discutido, gerou grande polêmica entre os leitores. Isso ocorreu devido à falta de esclarecimento – ou, como alega Shah Muhammad Rais, de comprometimento profissional e gratidão – da autora, que representou a cultura afegã a partir de seus próprios padrões de certo e errado.

Asne errou ao não entrar “a fundo” na ideologia que se propôs a revelar. Não se pode fazer uma boa pesquisa antropológica sem considerar o ponto de vista dos “nativos”. Seierstad não tentou se colocar no lugar de Sonya quando disse que esta desistiu de aprender a ler, ou quando afirmou que a menina acordava mais tarde que as outras mulheres. Não levou em consideração a origem humilde da jovem esposa, que não lhe permitia nem a idéia de poder aprender a ler; não relatou que a menina acordava mais tarde porque passava a maior parte da noite amamentando seu bebê recém-nascido.

Asne Seierstad preenche seu livro com muito mais histórias do que poderia ter visto ou ouvido durante os cinco meses que esteve hospedada na casa do livreiro. E, para completar, publicou um texto capaz de arruinar a honra e a estabilidade da família, descrevendo até mesmo os corpos nus das mulheres “Khan”.

Rais, em seu livro/resposta, a acusa de ter dado pistas suficientes para que qualquer um saiba quem são os protagonistas de seu livro, apesar dos pseudônimos. Diz, também, que seu pseudônimo revela a imagem de tirano que a jornalista teria tentado construir dele, já que Sulthan, em português Sultão, demonstra soberania e Khan seria uma referência ao conquistador Gengis Khan.

O estudo da jornalista norueguesa foi, na verdade, uma forma de reforço da concepção ocidental sobre a cultura afegã, e não de esclarecimento. Na construção de sua “etnografia”, Seierstad se comportou como alguns antropólogos evolucionistas, considerando muito da tradição e dos costumes afegãos um atraso em relação ao ocidente. O mencionado esclarecimento, do qual o leitor sente falta, só virá com a complementação de Shah Muhammad Rais, na qual explicará a lógica interna de sua sociedade. No intento de construir uma defesa contra as ameaças produzidas pela escritora norueguesa, o livreiro de Cabul acaba construindo uma etnografia de seu próprio grupo.

Referências bibliográficas

MALINOWSKI, Bronislaw. “Tema, método e objetivo desta pesquisa”. In: Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. Editora Unesp.

RAIS, Shah Muhammad. Eu sou o livreiro de Cabul. Editora Bertrand Brasil, 2007.

ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo? São Paulo: Brasiliense, 1988.

SEIERSTAD, Asne. O livreiro de Cabul. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.



[1] Ao colocar o termo romântico, não me refiro ao período literário específico, denominado romantismo, mas à inserção de características relacionadas a tal movimento no texto estudado. Veremos, por exemplo, que a narração do conflito da personagem/informante Leila possui características românticas, como a eterna infelicidade, a impossibilidade de mudança, os sonhos frustrados, etc. Ou seja, Seierstad constrói para a personagem uma vida de Cinderela sem final feliz, na tentativa de explicitar o ‘mundo da mulher afegã’.