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"É isso: tudo está ao alcance do homem e tudo lhe escapa, em virtude de sua covardia... Já virou até axioma. Coisa curiosa a observar-se: que é que os homens temem, acima de tudo? 'O que for capaz de mudar-lhe os hábitos': eis o que mais apavora..."

Dostoiévski

domingo, 6 de março de 2011

Modernismo:

Análise do conto Lisetta, de Alcântara Machado

Brás, Bexiga e Barra Funda é uma obra que, através de contos leves, apresenta um olhar sobre um aspecto do cotidiano paulista da década de 20 – o dia-a-dia dos imigrantes e descendentes de italianos. No prefácio do livro, intitulado “Artigo de Fundo”, o autor define os textos que compõem o trabalho:

Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram notícias. E este prefácio, portando, também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo.

(MACHADO, p.3)

Tal afirmação já demonstra a transposição de cenas do cotidiano para a obra literária, aspecto que marcou a produção do livro em questão. Os contos tem seu conteúdo marcado por episódios de rua, cenas do cotidiano pobre de São Paulo. Ainda no “Artigo de Fundo”, Machado explica a importância dos imigrantes italianos na construção da identidade do país e, sobretudo, da cidade de São Paulo. Esse é o ponto norteador deste livro, como o próprio título já denuncia – Brás, Bexiga e Barra Funda são bairros de São Paulo que são conhecidos, até hoje, por carregarem a tradição italiana. Nas palavras de Bosi:

Voltado para a vida da sua cidade, Alcântara Machado soube ver e exprimir as alterações que trouxera à realidade urbana um novo personagem: o imigrante. O enxerto que o estrangeiro, sobretudo o italiano, significava para o tronco luso-tupi da antiga São Paulo produzira mudanças de costumes, de reações psicológicas e, naturalmente, uma fala nova a espelhar os novos conteúdos.

(BOSI, 2006: 374)

No conto “Lisetta”, pode-se notar vários aspectos da modernidade da obra de Alcântara Machado. O texto é muito curto, possui linguagem simples e aborda um tema comum, uma cena corriqueira do cotidiano:

Quando Lisetta subiu no bonde (o condutor ajudou) viu logo o urso. Felpudo, felpudo. E amarelo. Tão engraçadinho.

Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pé diante dela.

Lisetta começou a namorar o bicho. (...)

(MACHADO, p.25)

Os aspectos ressaltados acima conferem à obra um caráter de notícia, de relato de um acontecimento comum. O ambiente onde se passa boa parte do enredo é um bonde, ou seja, um transporte coletivo. É um local onde se pressupõe a presença de várias pessoas, pertencentes a diferentes “níveis” sociais. O bonde está em movimento durante toda a cena que Lisetta protagoniza com o urso, o que reforça o caráter corriqueiro do enredo e o aproxima da notícia, de acordo com a definição dada pelo próprio autor no prefácio. O texto se encaixa no objetivo de “fixar tão-somente alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana desses novos mestiços nacionais e nacionalistas. É um jornal. Mais nada. Notícia. Só". (MACHADO, p. 4-5). Dessa forma, Machado segue os passos de Oswald de Andrade e Juó Bananere, pioneiros da crônica de imigração na imprensa paulista.

Outro aspecto interessante é a condição social das personagens principais. Lisetta e sua mãe são pobres, o que fica explícito nas seguintes passagens do texto:

Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pé diante dela.

(...)

Lisetta como compensação quis sentar no banco. Dona Mariana (havia pago um passagem só) opôs-se com energia e outro beliscão.

(MACHADO, p.27)

É a impossibilidade de ter um urso como o da menina rica que faz com que Lisetta o deseje com tanta força. Ela fica encantada quando vê o urso sentado “no colo da menina de pulseira de ouro e meias de seda” (p. 25). Esta, notando a inveja da menina pobre, decide provocá-la, exibindo o brinquedo.

A linguagem é outro ponto de destaque do texto, pois é usada de forma dinâmica e visual. O narrador não privilegia a norma culta e seu discurso tem um tom natural e conciso. O autor evita fazer digressões discursivas, pois estas quebrariam o ritmo da narrativa. A história é narrada de forma simples e a linguagem está mais próxima da crônica que do conto. Vale ressaltar a forte presença de expressões italianas e da modalidade informal da língua, sobretudo nos diálogos:

Hã! Hã! Hã! Hã! Eu que...ro o ur...so! O ur...so! Ai, mamãe! Ai, mamãe! Eu que...ro o... o... o... Hã! Hã!

— Stai ferina o ti amazzo, parola d'onore!

— Um pou...qui...nho só! Hã! E... hã! E... hã! Um pou...qui...

Senti, Lisetta. Non ti porterò più in città! Mai più!

(MACHADO, p.26)

As falas da mãe de Lisetta apresentam uma mistura do português com expressões italianas, o que era comum dentre os imigrantes e seus descendentes. Já as falas da menina, tentam se aproximar da linguagem da criança, apresentando muitas palavras no diminutivo e o vocativo “mamãe” no final das frases: “Olha o ursinho que lindo, mamãe!

Lisetta é uma menina pobre que vê no urso da menina rica um objeto de desejo. Sua necessidade, porém, não é compreendida pela mãe. O adulto não consegue compreender o sofrimento da criança e, na ânsia de diminuir o escândalo causado por esta, acaba gerando mais sofrimento, castigando e humilhando.

Pode-se notar também a preocupação do autor em delimitar o tempo e o espaço da narrativa na seguinte passagem do conto:

Lisetta sentia um desejo louco de tocar no ursinho. Jeitosamente procurou alcançá-lo. A menina rica percebeu, encarou a coitada com raiva, fez uma careta horrível e apertou contra o peito o bichinho que custara cinqüenta mil-réis na Casa São Nicolau.

(MACHADO, p. 26)

Ao citar o valor do objeto de desejo de Lisetta e indicar o local da compra, uma conhecida loja da época, o autor reforça a contemporaneidade da obra.

Lisetta faz um verdadeiro escândalo no bonde, na esperança de obter a permissão de tocar no urso. A mãe, muito irritada, pede desculpas à mãe da menina rica e castiga a filha com beliscões. A dona do urso, mesmo depois de descer do bonde, continua a provocar Lisetta, erguendo-o para que a menina visse. Trata-se aqui de uma visão não-idealizada da criança. Temos uma menina que inveja o urso da outra e o deseja tanto que acaba fazendo uma cena ridícula em um transporte coletivo. De outro lado, temos uma menina que sente prazer em exibir para Lisetta o objeto que esta deseja e não pode possuir. Essa visão sobre a criança fica clara também em outras passagens do texto, como a descrição dos irmãos de Lisetta: “O resto da gurizada (narizes escorrendo, pernas arranhadas, suspensórios de barbante) reunido na sala de jantar sapeava de longe” (MACHADO, p. 27).

Em casa, Lisetta sofre mais castigos, até que recebe de Ugo um presente – um ursinho de lata. Repleta de alegria, a menina pega o urso e, aos berros, tranca-se no quarto.

Todo o conto é trabalhado de forma simples, com personagens comuns e situações próprias do cotidiano paulista da década de 20. O bonde, um dos símbolos do progresso, tão forte na época, tem destaque no texto. O autor opta pela síntese para desenvolver um texto dinâmico e curto, o que é bem diferente do estilo das escolas anteriores – romântica e parnasiana. Não é à toa que Alfredo Bosi se refere a Machado como “O prosador do Modernismo paulista”. Segundo Bosi, “foi Antônio de Alcântara Machado quem por primeiro se mostrou sensível à viragem da prosa ficcional, aplicando-se todo a renovar a estrutura e o andamento da história curta” (BOSI, 2006: 374).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006).

MACHADO, Antônio de Alcântara. Brás, Bexiga e Barra Funda. Online: disponível na internet via http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bi000005.pdf

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