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"É isso: tudo está ao alcance do homem e tudo lhe escapa, em virtude de sua covardia... Já virou até axioma. Coisa curiosa a observar-se: que é que os homens temem, acima de tudo? 'O que for capaz de mudar-lhe os hábitos': eis o que mais apavora..."

Dostoiévski

domingo, 5 de abril de 2009

CASAR OU NÃO CASAR? EIS A QUESTÃO:
uma análise interpretativa das literaturas romântica e realista sob a temática do casamento

Paula Alves das Chagas


“Portanto, deixará o varão o seu pai e a sua mãe e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne.”
(Gênesis, 2:24)




Nos estudos literários, há uma grande preocupação em se estabelecer diferenças entre os períodos de criação. Quando falamos de Romantismo e Realismo, porém, as fronteiras são mais tênues, pois, segundo José de Nicola (NICOLA, 1998:128), “as características do início do Romantismo são praticamente opostas àquelas encontradas no final do movimento” e temos motivos para crer que exatamente essas características finais tenham sido a primeira aparição do Realismo na literatura.
É nessa pequena brecha entre um movimento e outro que vamos nos aventurar, fazendo uma análise interpretativa de alguns romances franceses pertencentes aos dois períodos supracitados
[1]. Nosso objetivo, portanto, é estabelecer, através da temática do casamento, semelhanças e diferenças entre os romances ditos românticos e os realistas e determinar que tipo de literatura fez a ponte entre os movimentos.
O Romantismo foi o período literário da exaltação do amor puro e da libertação através da união conjugal. O casamento, nos textos românticos, é a salvação dos heróis, o motivo pelo qual lutam e perecem. Desenvolve-se, assim, como o pilar do enredo, almejado, perseguido, necessitado. É por ele que o leitor aguarda após páginas e páginas de conflitos amorosos.
Mesmo que os “mocinhos” não subam ao altar, o autor do período romântico terá o cuidado de enfatizar a eterna durabilidade do sentimento sublime que nasceu entre os dois personagens. É o caso do romance A dama das Camélias, do escritor francês Alexandre Dumas Filho. Na obra, Marguerite, a mais bela cortesã da capital francesa, apaixona-se pelo estudante Armand e vê na sua união com ele a possibilidade de regeneração e reconstrução de sua vida. Dumas nos dá uma heroína ostentadora e apaixonada, uma pecadora redimida pelo poder do amor. Assim, pelas palavras da própria Marguerite, ela faz “desse amor a esperança, o sonho e o perdão” (DUMAS, 2003, p. 133) de sua vida.
Prova maior da redenção da prostituta é o sacrifício que faz em nome da honra de seu amado. Ao abdicar do amor de Armand para proteger o nome da família dele, ela atinge o ponto mais alto da nobreza romântica. “A senhora é uma nobre mulher” (DUMAS, 2003:133), afirma o pai do rapaz após conseguir a separação dos amantes.
No romance de Dumas Filho, a tão esperada união não se concretiza de forma marcada. O autor prefere se valer de outro artifício, negando à sua prostituta qualquer possibilidade de felicidade em vida. Marguerite adoece e morre, levando consigo o sentimento que a elevou. A descoberta do real motivo de sua separação faz com que Armand definhe de tristeza, punindo-se por não haver acreditado até as últimas conseqüências na pureza de sua amada.
A promessa do final feliz não se cumpre neste romance, mas o amor, esse permanece intocável, imortal. Apesar de não conseguir resistir às convenções sociais, é mais forte que a própria morte.
O “vilão”, na obra citada, não se apresenta na forma de um personagem, mas na sociedade como um todo. As convenções sociais são o empecilho para a concretização do almejado casamento, como nos mostra Adilson Citelli, ao afirmar que “no romantismo a tensão aparece relacionada diretamente com o mundo, com os preconceitos de uma ética coletiva” (CITELLI, 2004:45). Logo, a união de Marguerite e Armand não é possível diante das convenções morais de seu ambiente social.
A idealização da vida a dois, do entusiasmo da relação amorosa, é mantida por anos a fio nos romances. Porém, pouco mais tarde, surge na literatura uma visão muito mais crítica sobre o amor. É Balzac que traz a público, em A mulher de trinta anos, uma heroína às avessas, cuja infelicidade provém exatamente daquele que deveria ser o objetivo-mor da protagonista romântica – o casamento. Ao contrário dos autores de sua época, Balzac preocupa-se em mostrar uma relação sem obstáculos para a concretização do casório. Sua protagonista apaixona-se e une-se a Vitor D’Aiglemont sem empecilhos. Aí é que se encontra a grande inovação do escritor: os conflitos da trama têm início justamente após o “felizes para sempre”.
Júlia D’Aiglemont sente-se insatisfeita com o casamento e chega a desejar jamais ter subido ao altar. Tudo porque não encontra na relação a dois o furor e a promessa de felicidade eterna. Pelo contrário, sente-se explorada e abandonada pelo marido e pela sociedade. O casamento perde, em Balzac, o significado que tinha em Dumas e Hugo, passando a ser visto como mera convenção social, que privilegia o homem e sufoca a mulher. Essa visão fica bem marcada nas seguintes palavras da protagonista:

O casamento, essa instituição sobre a qual se apóia hoje a sociedade, só a nós faz sentir todo o seu peso: para o homem a liberdade, para a mulher, deveres. Devemos consagrar a eles toda a nossa vida, eles nos consagram raros instantes. (BALZAC, 2004, p.83)

Mais a frente, a heroína manifesta uma opinião que vem quebrar completamente com a visão santificada da união conjugal: “O casamento, tal como hoje se pratica, parece-me ser uma prostituição legal.” (BALZAC, 2004, p.83). Ao comparar-se à prostituta, que vende seu corpo a luxúria do homem sem sentir por ele nenhum afeto, Júlia denuncia os costumes de sua época – mais explicitamente, o casamento. A “união sagrada” que seria a redenção de Marguerite torna-se a condenação de Júlia. Surge, então, uma nova promessa para a heroína romântica: o casamento por amor, a real concretização do sonho sublime da união terna e eterna.
Júlia, porém, encontra outros meios de se satisfazer, entregando-se a paixões extraconjugais. Fazendo isso, ela pisa na instituição que, segundo Ronaldo Vainfas, “impôs-se definitivamente como um verdadeiro sacramento” (VAINFAS, 1992:31).
O ensejo dado por Balzac será, anos mais tarde, muito bem aproveitado por Gustave Flaubert, dando origem ao romance que seria considerado o marco inicial do realismo literário. Madame Bovary chega aos leitores desafiando a moral e a sociedade. Suas páginas, impregnadas de crítica social, chamam a atenção pela prosa minuciosamente elaborada. Flaubert consegue, após cerca de seis anos de trabalho, transpor para o papel a sociedade francesa de seu tempo.
Nada escapa a Flaubert. Ciência, religião, amor: tudo se mistura numa trama onde nada é suficientemente aprovável ou condenável. Através de sua personagem-título, Ema Bovary, o escritor traz à tona, novamente, o drama da mulher insatisfeita e ávida por paixão. Assim como Júlia D’Aiglemont, Ema deseja encontrar um amor verdadeiro e o busca fora do casamento. As tentativas frustradas a levam a uma medida extrema: o suicídio. Ao perceber que não poderia ser feliz em vida, ela se entrega ao encontro da morte.
A sociedade torna a fazer o papel de vilã em Madame Bovary e A mulher de trinta anos. Dessa vez, porém, ela não é o empecilho da união, mas as algemas que prendem a mocinha em um casamento infeliz. É o peso moral e social do casamento que impede a libertação de Júlia e Ema, dando origem à infelicidade de ambas.
Ema burla o casamento, fere a instituição social que a sufoca. É nela que o sonho romântico do casamento perfeito se esvai, e é exatamente por sonhar com um romance tão belo quanto o dos livros que lê que ela sofre e causa o sofrimento de seu marido.
Tomando o casamento como linha de análise, poderíamos dizer que a obra de Balzac é a transição entre a união perfeita do romantismo e a instituição decadente do realismo. O romance A mulher de trinta anos estaria em uma espécie de meio-termo entre os dois períodos, por apresentar características de ambos. Já Flaubert, inaugurador do realismo, situa bem as características do período em seu romance, sobretudo no que diz respeito ao matrimônio. Ao revelar os piores aspectos do casamento, ele quebra com a visão romântica, desfazendo a idealização do período anterior e, ao mesmo tempo, criticando-a. Constrói, assim, uma nova forma de pensar, uma nova heroína, e, por conseguinte, uma sociedade diferente para acolher a nova mulher que surge de sua literatura.
Nossa análise se prendeu a três obras da literatura francesa, o que traz certas limitações aos nossos resultados. Foi utilizado um único critério de análise – o comportamento da temática do casamento nas obras – e, por isso, cremos que seja necessário confrontar esses mesmos títulos em torno de outros critérios para confirmar a validade dos resultados obtidos. Talvez seja necessário um estudo mais profundo da literatura do século XVII para que tenhamos resultados mais precisos e possamos confirmar se o comportamento da obra balzaquiana é ou não exercido por outros autores da época.











Referências Bibliográficas


BALZAC, Honoré de. A mulher de trinta anos. Tradução: Pietro Nassetti. São
São Paulo: Martin Claret, 1992.
CITELLI, Adilson. Romantismo. São Paulo: Ática, 3ª ed., 2004.
FILHO, Alexandre Dumas. A Dama das Camélias. Adaptação: Carlos Heitor
Cony. São Paulo: Scipione, 2003.
FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. São Paulo: Abril, 1971.
NICOLA, José de. Literatura Brasileira: das origens aos nossos dias. São Paulo: Scipione, 1998.

VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no ocidente cristão. São Paulo:
Ática, 1992.

[1] Os romances utilizados em nossa análise são: A dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho; A mulher de trinta anos, de Balzac e Madame Bovary, de Gustave Flaubert.

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