Ao ir embora, disse a mim mesma: isto é o Afeganistão. Seria interessante escrever um livro sobre esta família. (Asne Seierstad)
Eu me pergunto se Asne Seierstad é cega (...) Seus olhos europeus não conseguiram ver o que está acontecendo à esquerda e à direita?
(Shah Muhammad Rais)
1- Tema, métodos e objetivos da pesquisa:
O trabalho antropológico pode ser resumido como uma tentativa de compreender e fazer compreender a lógica interna de determinada sociedade ou grupo. Para tal, realiza-se, na maioria dos casos, o que se denomina trabalho de campo. Este consiste em um período de convivência do etnólogo com o grupo a ser estudado.
Malinowski (1978) afirma que o antropólogo deve observar atentamente a vida dos ‘nativos’ – como denomina os pertencentes ao grupo estudado – e registrar fielmente tudo o que for contemplado em campo, bem como as histórias, fictícias ou não, que lhe forem relatadas. O resultado da pesquisa de campo é a etnografia, um texto que relata o modo de vida dos nativos, a compreensão do etnólogo sobre ele e a explicação deste sobre a lógica dos costumes, pensamentos e atitudes nativas.
O texto que se segue não se trata de uma etnografia propriamente dita, mas de uma discussão acerca da pesquisa publicada em livro pela jornalista norueguesa Asne Seierstad. Seu livro, O livreiro de Cabul, gerou polêmica em todo o mundo e ganhou uma resposta a altura. Trata-se de Eu sou o livreiro de Cabul, escrito por Shah Muhammad Rais, o livreiro cuja família foi estudada e descrita por Asne.
Baseada nas discussões das aulas de Antropologia Cultural do semestre que se encerra, proponho-me a discutir, nesta redação, a relação entre a pesquisa de Seierstad e o fazer antropológico. Pretendo, também, discutir os métodos utilizados pela autora e as afirmações feitas por ela em seu livro, contrastando-as com a bibliografia do curso e com a versão de Shah Muhammad Rais.
2- O livreiro de Cabul: romance, jornalismo ou etnografia?
Asne Seierstad é jornalista e recebeu muitos prêmios por seu desempenho profissional. Dentre eles, pode-se destacar o Grande Prêmio Norueguês de Jornalismo, em 2003. Mas seu verdadeiro sucesso começaria durante uma reportagem no Afeganistão, quando conheceria o livreiro que mudou sua vida. Trata-se de Shah Muhammad Rais, o Sultan Khan de O livreiro de Cabul.
Foi na livraria no centro de Cabul que conheceu o “patriota afegão, muitas vezes decepcionado com seu próprio país” (SEIERSTAD, 2009:7). Em meio a livros e conversas, uma amizade se inicia e, com ela, a ideia que lhe poria fim: Asne decide escrever um livro sobre a “família Khan”.
A pesquisadora é bem recebida na família do livreiro e lá permanece, por cinco meses, coletando material para seu livro. Nesse tempo, assume a posição de um antropólogo, pois sua função é ver, ouvir e registrar o maior número possível de fatos relevantes para serem apresentados à comunidade europeia.
Assim como o antropólogo, a jornalista se prepara para a pesquisa de campo, levando computador, blocos de anotações, canetas, celular, etc.. Passa, também, por dilemas de antropólogo, como na dificuldade em registrar tudo o que vê e ouve e na difícil comunicação com seus “nativos”. Observemos os seguintes trechos da obra:
Contavam-me coisas quando tinham vontade, não quando eu perguntava. Não era necessariamente quando eu estava com o bloco de anotações a postos que eles estavam a fim de falar; podia ser durante uma ida ao bazar, num ônibus, ou talvez tarde da noite, deitados no tapete.
(...) Eu não dominava o dari, dialeto persa falado pela família Khan, porém, vários membros da família sabiam falar inglês. (SEIERSTAD, 2009:9)
Podemos relacionar o trabalho de Asne Seierstad com as funções definidas por Roberto Cardoso de Oliveira em seu texto “O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever”. Ao penetrar numa cultura extremamente diversa da sua e expor seus costumes e, o mais importante, sua visão de mundo, Seierstad se propõe a elaborar um trabalho que se encaixa nos moldes antropológicos.
O antropólogo, porém, deve estar alerta. Ao adentrar um grupo de estudo, o pesquisador já tem concepções preestabelecidas sobre esta ou aquela atitude de seus informantes. Mas o trabalho do etnólogo é justamente explicar a lógica do sistema estudado, ou seja, tentar enxergar o mundo pelo ponto de vista do nativo. E, neste ponto, a jornalista norueguesa deixa a desejar.
Logo no início de seu livro, Asne afirma que sua obra é um misto de ficção e realidade, e que não se propõe a estudar uma típica família afegã, mas sim uma família incomum para a sociedade na qual se insere. Em seu texto, porém, a autora não deixa claro quais são os pontos ficcionais e quais são os reais, além de dar maior ênfase a questões como o tratamento às mulheres, o sistema de casamentos e o conflito dos jovens, deixando de lado os traços distintivos da “família Khan”.
As histórias relatadas pela jornalista levam o leitor a uma complexa reflexão acerca da cultura muçulmana. Entretanto, a autora não se compromete a explicar os propósitos deste ou daquele costume, fazendo de seu texto uma mera reprodução do senso comum. O que marca sua obra é justamente aquilo que denominou caráter ficcional, ou seja, a forma romântica com que trata os conflitos pessoais de suas personagens reais, muitas vezes trazendo fatos ou sentimentos que não correspondem à realidade do que foi pesquisado, como acusa Rais.
Para melhor compreendermos a proposta de Seierstad e seus pontos falhos, analisemos mais detalhadamente sua obra.
2.1- Em defesa da mulher!
Sem dúvidas os costumes e tradições muçulmanos chocam os ocidentais no que toca ao tratamento às mulheres. Não é difícil para uma mulher ocidental sentir-se revoltada mediante questões como o uso do véu e da burca, a passividade da mulher na negociação do casamento, a total submissão ao marido, dentre outras polêmicas da cultura afegã. Asne Seierstad também não se calou diante de tais costumes.
O livreiro de Cabul dá um espaço privilegiado à mulher, tornado-a protagonista de um drama nacional, porta-voz de uma sociedade injusta. Assim, Seierstad descreve a sofrida trajetória de suas mulheres/personagens. Observemos como a autora define algumas delas:
Sharifa: É a primeira esposa do livreiro, rejeitada aos cinqüenta anos, quando o marido resolve procurar uma segunda esposa “que o mantenha jovem”.
Sonya: É a pobre eleita para ocupar o cargo de segunda esposa de “Sultan Khan”. Segundo Asne, a menina se casa aos dezesseis anos, contrária à sua vontade. “Sulthan” também teria subornado o pai da moça para poder dormir com ela antes do casamento, com o intuito de prepará-la para a noite de núpcias.
Leila: O retrato da maltratada e submissa menina afegã. Ainda solteira aos dezenove anos, é a “criada” da casa.
Saliqa: Menina que comete o delito de receber cartinhas de um admirador secreto e é duramente castigada pela família.
Seierstad quase faz de seu texto um tratado de defesa às mulheres. Não digo, aqui, que esteja errada, mas que foge, de certa forma, à proposta antropológica. No impulso de denunciar o que, para ela, seria uma injustiça, a jornalista acaba perdendo o foco de sua pesquisa e lançando mão de recursos não muito éticos.
A autora sabia, a todo instante, que não estava lidando com personagens fictícios. Mesmo assim, relata situações constrangedoras com precisão e, em alguns casos, segundo Rais, insere elementos ficcionais que comprometem a credibilidade da família.
Ao relatar o episódio de Saliqa, por exemplo, Asne revela a intimidade de uma jovem afegã, comprometendo sua reputação. Dentro da tradição afegã, uma moça que troca bilhetes de amor com um desconhecido não merece respeito. Menos ainda uma jovem que mantenha relações sexuais com o noivo antes do casamento, como foi dito de Sonya. Os pseudônimos dados pela autora não dão conta de proteger a identidade das mulheres em questão – afinal, ela está se referindo à família do maior livreiro de Cabul.
Em Eu sou o livreiro de Cabul, Shah Muhammad Rais condena tal atitude da jornalista, dizendo que “em sua ignorância, Asne Seierstad omite a catastrófica realidade dessas mulheres; ela ilude as pessoas de todo o mundo quando as leva a acreditar que homens como 'Sulthan Khan', e não os soldados russos, o Talibã, a al-Qaeda e todos os anos de guerra civil são os culpados pela sua desgraça”. Segundo o livreiro, Asne erra ao dizer que as mulheres afegãs são reprimidas, porque, na verdade, elas são protegidas. Ele explica que na cultura afegã a mulher é tão preciosa que deve ser guardada. Por isso, protegem seus rostos e corpos da volúpia masculina, com véus e burcas.
Outro ponto discutido por Rais é a posição de Seierstad quanto ao casamento nos moldes afegãos. Segundo a autora, o casamento pouco tem a ver com amor e este pode até ser interpretado como um crime grave, passível de punição com a morte. Ainda assim, relata vários episódios amorosos de mulheres e moças, comprometendo-as socialmente. Além disso, em seu livro, Rais nos dá a explicação lógica que faltou no texto da norueguesa sobre o esquema do casamento no Afeganistão. Para ele, não se trata de uma negociação, mas de uma demonstração de desejo, respeito e poder, representada no dote. Explica também que a noiva não é obrigada a aceitar o noivo escolhido pelos pais e, se o faz, é porque acredita que estes sabem o que é melhor para ela.
O que faltou a Asne foi relativizar as questões que, para ela, já estavam tão definidas como erradas ou absurdas. O único momento em que tentou enxergar o mundo pela perspectiva de uma mulher afegã foi ao descrever o uso da burca. Mas, ao que parece, não conseguiu chegar à conclusão de que sua compreensão ocidental do modo de vida daquelas mulheres jamais poderia ser comparada à visão de quem está dentro do sistema, e o sente na própria pele.
2.2- Realidade x ficção:
Como já foi mencionado, a própria autora assume ter mesclado elementos fictícios aos fatos reais colhidos em sua pesquisa. Porém, além de confundir o leitor por não explicitar as fronteiras da realidade em seu texto, Seierstad transforma seus informantes em personagens de um romance, atribuindo-lhes os sentimentos que considerar relevantes a cada discussão.
Desse modo, podemos observar o caráter dual que Rais – ou Sulthan Khan – apresenta na narrativa da jornalista. O livreiro é descrito ora como um homem esclarecido e liberal, ora como o tirano senhor da família Khan. Sobre esse ponto, Rais diz: “Da forma como sou descrito por Asne Seierstad, o título de seu livro devia ter sido O carniceiro de Cabul.”
Da mesma forma, atribui ao filho mais velho de Rais, “Mansur”, um caráter duvidoso e pensamentos libidinosos que envergonhariam qualquer muçulmano. Mais uma vez, o livreiro contra-ataca, dizendo: “Quando isso for lido no Afeganistão, meu filho não terá mais lugar na sociedade, será estigmatizado como um homem indigno que vive pensando em molestar meninas de rua”.
Outra vítima da implacável mão da jornalista é a irmã mais nova do livreiro, “Leila”. A moça é transformada, na obra de Seierstad, em símbolo da opressão feminina. É a Cinderela que sonha deixar a casa do irmão malvado para se casar com um homem que a respeite. Mas, no final das contas, acaba prometida a um noivo que jamais lhe dará valor.
Ao confundir realidade e ficção, moldando os fatos a seu critério, Asne Seierstad age de forma etnocêntrica, segundo a qual, como diz Everardo Rocha, “nosso grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência” (ROCHA, 1988:7). Asne pensa e sente a cultura afegã a partir de seus próprios padrões, construindo um texto mais voltado para o entretenimento que para fins antropológicos.
Ainda segundo o supracitado autor, “Na nossa chamada “civilização ocidental”, (...) existem diversos mecanismos de reforço para o seu estilo de vida através de representações negativas do outro” (ROCHA, 1988:15). Infelizmente, é o que podemos encontrar na obra da norueguesa. Ao condenar o uso de véus e burcas pelas mulheres mulçumanas, Seierstad defende que se vistam segundo padrões ocidentais. Defende também que os jovens tenham liberdade para fazer o mesmo. Mas, seria mesmo condenável a relutância na adoção de um modelo de vida produzido por outra cultura, que segue outra religião e acredita em coisas diferentes? Estariam os muçulmanos errados em tentar manter a sua tradição? Essa resposta Asne Seierstad não nos dá.
3- Nem tudo são espinhos:
Devemos ter a clareza de ressaltar que nem tudo são espinhos na obra de Seierstad. Em certos pontos, a autora deu conta da proposta antropológica, revelando-nos características para muitos desconhecidas da cultura afegã. Essas características estão relacionadas à sexualidade, tema polêmico em se tratando de islamismo.
A jornalista relata que a sexualidade está presente em diversas lendas e poesias afegãs. Conta também que muitas mulheres mantem relações secretas com homens e que, após a queda do Talibã, muitos policiais fazem vista grossa aos amantes. Outro ponto interessante é a disseminação do homossexualismo masculino no sudeste do Afeganistão. Essas relações se dão, principalmente, entre experientes comandantes e jovens soldados do exército. Segundo Seierstad,
Os comandantes não vivem apenas sua homossexualidade, a maioria tem esposa e um monte de filhos. Mas raramente estão em casa e passam a vida entre homens. Sempre há grandes dramas de ciúmes entre esses jovens amantes, não são poucas as vinganças mortais já encenadas por ciúme de um amante que se dividiu entre dois comandantes. (SEIERSTAD, 2009: 251).
4- Considerações finais:
O livro de Asne Seierstad, como já foi discutido, gerou grande polêmica entre os leitores. Isso ocorreu devido à falta de esclarecimento – ou, como alega Shah Muhammad Rais, de comprometimento profissional e gratidão – da autora, que representou a cultura afegã a partir de seus próprios padrões de certo e errado.
Asne errou ao não entrar “a fundo” na ideologia que se propôs a revelar. Não se pode fazer uma boa pesquisa antropológica sem considerar o ponto de vista dos “nativos”. Seierstad não tentou se colocar no lugar de Sonya quando disse que esta desistiu de aprender a ler, ou quando afirmou que a menina acordava mais tarde que as outras mulheres. Não levou em consideração a origem humilde da jovem esposa, que não lhe permitia nem a idéia de poder aprender a ler; não relatou que a menina acordava mais tarde porque passava a maior parte da noite amamentando seu bebê recém-nascido.
Asne Seierstad preenche seu livro com muito mais histórias do que poderia ter visto ou ouvido durante os cinco meses que esteve hospedada na casa do livreiro. E, para completar, publicou um texto capaz de arruinar a honra e a estabilidade da família, descrevendo até mesmo os corpos nus das mulheres “Khan”.
Rais, em seu livro/resposta, a acusa de ter dado pistas suficientes para que qualquer um saiba quem são os protagonistas de seu livro, apesar dos pseudônimos. Diz, também, que seu pseudônimo revela a imagem de tirano que a jornalista teria tentado construir dele, já que Sulthan, em português Sultão, demonstra soberania e Khan seria uma referência ao conquistador Gengis Khan.
O estudo da jornalista norueguesa foi, na verdade, uma forma de reforço da concepção ocidental sobre a cultura afegã, e não de esclarecimento. Na construção de sua “etnografia”, Seierstad se comportou como alguns antropólogos evolucionistas, considerando muito da tradição e dos costumes afegãos um atraso em relação ao ocidente. O mencionado esclarecimento, do qual o leitor sente falta, só virá com a complementação de Shah Muhammad Rais, na qual explicará a lógica interna de sua sociedade. No intento de construir uma defesa contra as ameaças produzidas pela escritora norueguesa, o livreiro de Cabul acaba construindo uma etnografia de seu próprio grupo.
Referências bibliográficas
MALINOWSKI, Bronislaw. “Tema, método e objetivo desta pesquisa”. In: Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. Editora Unesp.
RAIS, Shah Muhammad. Eu sou o livreiro de Cabul. Editora Bertrand Brasil, 2007.
ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo? São Paulo: Brasiliense, 1988.
SEIERSTAD, Asne. O livreiro de Cabul. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.