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"É isso: tudo está ao alcance do homem e tudo lhe escapa, em virtude de sua covardia... Já virou até axioma. Coisa curiosa a observar-se: que é que os homens temem, acima de tudo? 'O que for capaz de mudar-lhe os hábitos': eis o que mais apavora..."

Dostoiévski

quarta-feira, 20 de julho de 2011

As questões antropofágica e antropoêmica no conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, de Rubem Fonseca.


Pensando nas questões antropofágica e antropoêmica, podemos ressaltar, no conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, alguns personagens e situações que se encaixam em uma das duas formas. A antropofágica, por exemplo, é definida por Bauman como o “aniquilamento da alteridade, seguido de sua transformação no sentido de fazê-la semelhante” e pode ser relacionada, no conto, à atitude inicial de Epifânio. Este, apesar de desejar viver da escrita, continua trabalhando na companhia de águas e esgotos porque seu amigo João lhe diz que “o verdadeiro escritor não deve viver do que escreve”. Epifânio sufoca seu desejo para seguir uma regra: “não se deve servir à arte e a Mammon ao mesmo tempo” (p. 11). Somente após ganhar um prêmio na loteria, o homem encontra a possibilidade de deixar o emprego e se dedicar integralmente à escrita, assumindo então o nome de Augusto.

Em suas andanças pelas ruas do Rio de Janeiro, Augusto se depara com a Igreja de Jesus Salvador das Almas, que funciona em um cinema. O pastor Raimundo, líder da congregação, emprega todo o seu esforço em cumprir a doutrina da igreja e alcançar as metas estabelecidas pelo bispo. Condiciona seu comportamento à repetição de práticas sugeridas pelo bispo ou imitação de atitudes comuns dos outros pastores bem sucedidos da igreja. Essa relação fica clara na seguinte fala do bispo:

“Cada pastor é responsável pelo templo em que trabalha. A sua arrecadação tem sido muito pequena. Sabe quanto o pastor Marcos, de Nova Iguaçu, arrecadou no mês passado? Mais de dez mil dólares. Nossa igreja precisa de dinheiro.” (p. 39)

Os fiéis também agem por imitação. Para pertencerem ao grupo, modificam seu estilo de vida e passam todos a seguir uma mesma doutrina: “todos os crentes da igreja nunca vão ao cinema, por proibição expressa do bispo, nem para ver a vida de Cristo na Semana Santa.” (p. 13)

A antropoêmica, também está presente no texto de Rubem Fonseca. Em dado momento da narrativa, Augusto se encontra com um grupo de moradores de rua, que rejeitam a denominação “mendigos”. Estes, vivem na calçada do Banco Mercantil do Brasil. O chefe do clã diz a Augusto: “Presta atenção, bacana, a cidade não é mais a mesma, tem gente demais, tem mendigo demais apanhando papel, disputando o ponto com a gente, um montão vivendo debaixo de marquise, estamos sempre expulsando vagabundo de fora.” (p. 34)

A realidade de vida dos mendigos é claramente negada pela sociedade.
Eles vivem diante do Banco Mercantil há dois anos, regulando sua rotina para não atrapalhar o ritmo da rua em dia de expediente: “Nos dias úteis o barraco fica desarmado, as grandes folhas de papelão e a tábua tirada do buraco do metrô são encostadas na parede durante a hora do expediente (...). Mas hoje é sábado, no sábado não há expediente no Banco Mercantil do Brasil, e o barraco de Marcelo e Ana Paula, uma caixa de papelão usada como embalagem de uma geladeira grande, não foi desarmado, e Ana Paula goza desse conforto.” (p. 32)

Os exemplos citados são apenas alguns dentre os muitos que o conto nos apresenta, já que o texto nos dá, através dos encontros de Augusto em seus passeios pelas ruas do Rio de Janeiro, a voz dos excluídos, dos grupos que comumente são esquecidos ou negados pela sociedade. Trata-se, portanto, de um texto no qual as questões antropoêmica e antropofágica podem ser apontadas.

Tendências do contemporâneo em Bolor, de Augusto Abelaira

A leitura de Bolor provoca as mais diversas sensações. Trata-se de um romance capaz de deslocar o leitor de seu lugar-comum e convidá-lo a participar da narrativa, a refletir os elementos do texto e tentar preencher suas lacunas. Como bem afirma André Pereira da Costa, Bolor não é um “romance ingênuo que, mais do que distrair, tranqüiliza o leitor quanto ao seu poder de domínio sobre o mundo” (COSTA, 1982, p.36). O romance vai pelo caminho oposto, enredando o leitor numa teia de perguntas sem resposta, de vozes que se confundem, de datas falsas: “ainda ontem escrevi nove de Abril quando hoje são trinta de Janeiro” (ABELAIRA, 2004, p. 112).

A estrutura do romance já evidencia a ausência de compromisso com eventuais modelos romanescos, o que se dá através de “diversificados experimentalismos” (MAGALHÃES, p. 365), marcas da literatura contemporânea. Temos, em Bolor, a construção de um diário íntimo, apresentado logo nas primeiras páginas da obra por Humberto, o qual se declara “antecipadamente sabedor da inutilidade das linhas” que há de redigir. Ora, se um diário é constituído de uma escrita íntima e pessoal, a “utilidade” do texto que se inicia há de ser a busca do autoconhecimento. Humberto indaga: “Que vou eu escrever – eu, a quem nada no mundo obriga a escrever?” (ABELAIRA, 2004, p.9). A preocupação do narrador com seus futuros textos toma conta do primeiro “capítulo” do diário (11 de Dezembro), o que fica claro na perturbação que Humberto demonstra pela página cento e quinze, “ainda branca, ainda parda”. “Como saber se nela (...) não contarei (não terei contado) coisas de cortar o coração? Sobre mim. Ou sobre o mundo” (idem, p.9) é o questionamento de Humberto. Mas tenhamos sempre em vista a definição de Costa: romance que não tranqüiliza o leitor. A referida página cento e quinze revela a face de um jogo, no qual o tempo não obedece necessariamente a uma linha cronológica:

Sem data

As duas páginas anteriores, e também esta, não foram escritas depois da cento e catorze, como seria lógico, mas em dez de Dezembro. E quando amanhã, (onze de Dezembro) começar este diário cheio de preocupações pelo destino que me aguarda na página cento e quinze, então ainda branca – como hei de escrever –, mentirei escandalosamente. Essa página já não será pertença do futuro, não aguardará um destino imprevisível (coisas de cortar o meu coração e o coração do mundo), estará escrita há vinte e quatro horas, será o passado – foi a primeira deste diário a ser escrita, e esta é a terceira.

O que Abelaira faz aqui é registrar o futuro (a página cento e quinze, que na ordem cronológica deveria ser escrita meses depois da primeira página do diário) como passado, rompendo “com a noção de continuidade que estatui a ordem estanque passado-presente-futuro” (COSTA, 1982, p. 39).

Todo o romance se pauta na ambigüidade, sobretudo no que diz respeito à figura do narrador. Embora o padrão de escrita de um diário requeira a presença de uma única voz – a do autor do diário – a narrativa de Bolor é contituída por três vozes: Humberto, Maria dos Remédios e Aleixo. A “troca de narradores” chega a ser marcada no texto pelas cores de tinta que cada um usa, respectivamente azul, preta e roxa. Porém, ainda segundo Costa, “a ambiguidade que então se instala é de tal forma inextrincável que nem mesmo os dados ‘objectivos’ são capazes de nos conduzir em meio ao labirinto” (COSTA, 1982, p. 36).

Parece-nos, inicialmente, que Maria dos Remédios invade a intimidade do diário do marido, no intuito de encontrar um meio de refletir e discutir a relação de ambos. O casamento, visivelmente desgastado, leva a esposa a questionar Humberto: “Porque não deixamos as canetas, não quebramos o silêncio, mantemos deliberadamente esta ignorância artificial em vez de ousarmos dizer em voz alta o que ousamos escrever em voz baixa?” (ABELAIRA, 2004, p. 38). Maria dos Remédios chega a escrever no diário no mesmo dia que Humberto (16 de dezembro), e afirma: “se é mais difícil pronunciar as palavras do que escrevê-las, por que não tentaste refazer tudo a partir destas páginas?” (idem, p. 45). Porém, no “capítulo” referente ao dia 30 de Janeiro, Humberto faz a seguinte revelação: “Ao menos por instantes, Maria dos Remédios, posso deixar de ser transparente aos teus olhos, basta dizer-lhe que escrevo muitas vezes em teu nome (e no do Aleixo).” (idem, p.112). Logo, há um narrador, Humberto, que assume duas outras vozes, ainda num processo de busca de autoconhecimento, já que a sua própria individualidade não está bem definida. Retomando Costa, pode-se afirmar que Humberto

observa o comportamento dos outros e, principalmente, de Maria dos Remédios e Aleixo – que se tornaram para ele a ‘consciência alheia’, o ‘outro irredutível’ – cuja liberdade é preciso paralisar para que se tornem apreensíveis como objectos. (COSTA, 1982, p. 38)

Isabel Allegro Magalhães, ao tratar do noveu-roman, ressalta determindados aspectos que podem ser observados também na leitura de Bolor, tais como a impossibilidade do ato de narrar, as novas funções do narrador e a ruptura com o padrão burguês na construção dos personagens. No romance em questão, temos um casal que percebe a sua relação como rotineira e desgastada. Humberto chega ao extremo de precisar tirar a esposa do ambiente doméstico para tentar enxergá-la:

– Decidira jantar num restaurante, na companhia da Maria dos Remédios, com a intenção de melhor a ver, de melhor a conhecer, pois em casa ela dissolvia-se no meio da mobília, era um móvel a juntar aos outros móveis, objecto indistinto, objecto de todos os dias. Aqui, mesmo fisicamente, a Maria dos Remédios avultava entre as outras coisas, precisamente porque as outras coisas, ainda não vencidas pelo hábito, também se tornavam visíveis, cheias de pormenores. Impossível não dar pela Maria dos Remédios. (ABELAIRA, 2004, p.69)

Trata-se de um casamento que foge claramente ao padrão burguês. O marido não enxerga a esposa e precisa levá-la a uma restaurante para poder vê-la melhor. Humberto e Maria dos Remédios sentem sua relação desgastada pela rotina e estão em constante questionamento. Ambos buscam em relações extraconjugais aquilo que seu parceiro não pode dar, já que ninguém pode dar tudo a alguém. A pergunta feita pela esposa, ainda no início da narrativa – “Costumas pensar muitas vezes na Catarina?” –, impulsiona Humberto a pensar seu relacionamento e seu comportamento a partir da figura dessa outra mulher. E é pensando nela que revela todo o desgaste de seu casamento, numa passagem em que Catarina e Maria dos Remédios se confundem – “Ouso escrever pela primeira vez: quando a Catarina morreu não senti grande pena” (idem, p. 29). E mais: “Sentia-me morto, ali ao lado da Catarina, mas prestes a renascer” (idem, p. 29). A morte de um dos parceiros é condição para a transformação, a ressurreição do outro. Humberto acrescenta ainda: “se a Maria dos Remédios morresse? Por que ela não morre?” (idem, p. 31).

É a inquietação diante de sua relação que move a criatividade de Humberto na construção do diário. Na passagem referente ao dia 9 de Janeiro, o narrador questiona: “Em nome de quê tenho eu selecionado o que escrevo?” (idem, p. 33). Voltamos aqui à questão inicial: a “finalidade” do diário. Ao tentar perceber a Maria dos Remédios – apreender a existência da esposa – Humberto se lança numa busca pela singularidade. Já no dia 12 de Abril, pela voz de Maria dos Remédios, encontra-se a seguinte observação: “Peguei na caneta, escrevi eu..., mas depois decidi que o sujeito da frase, de todas as frases, deveria ser nós” (idem, p. 120). Maria dos Remédios e Catarina, Humberto e Aleixo, o nós dessa narrativa, ao mesmo tempo em que parecem faces diversas de uma única dupla de personagens – Julieta e Daniel – revelam-se como um nós inalcançável, “ainda sem corpo, ainda isolado”. Cabe ressaltar a indagação que se segue, sobre esse nós: “Seria possível dar-lhe vida, procurar-lhe o corpo que nunca chegara a ter?” (idem, p. 120). Essa frese revela novamente a ambiguidade do sujeito, na qual se pauta o romance.

Bolor se revela como uma narrativa sem uma intriga aparente. Toda a ação se dá com e pela linguagem, num processo em que a escrita cria a ação. Abelaira nos dá, através desse romance, um texto no qual a ausência de intriga e a impossibilidade de se afirmar um sujeito narrador são o pano de fundo de uma forte reflexão sobre o processo de construção da própria escrita, pautado na ambiguidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ABELAIRA, Augusto. Bolor. Lisboa: Editorial Presença, 2005.

COSTA, André Pereira da. Bolor: a ambigüidade procurada. In: Revista Colóqui/Letras. Ensaio, nº 68, Jul. 1982, p. 35-41.

MAGALHÃES, Isabel Allegro. Ficção anos 60. In: História da Literatura Portuguesa: as correntes contemporâneas.