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"É isso: tudo está ao alcance do homem e tudo lhe escapa, em virtude de sua covardia... Já virou até axioma. Coisa curiosa a observar-se: que é que os homens temem, acima de tudo? 'O que for capaz de mudar-lhe os hábitos': eis o que mais apavora..."

Dostoiévski

domingo, 6 de março de 2011

Literatura Infanto-juvenil

Uma análise do conto Barba Azul, de Charles Perrault, segundo o esquema básico de Vladimir Propp

Este trabalho tem por objetivo estudar os aspectos do conto “Barba Azul”, de Charles Perrault, partindo das personagens principais – o vilão e a heroína. Como Vladimir Propp “foi o primeiro a tentar descobrir a estrutura do conto a partir do estudo da forma (...) e fundar assim a especificidade do gênero (...)”, pretende-se, nessa análise, aplicar ao conto escolhido o seu esquema básico.

Propp, ao levantar o esquema básico do conto russo, estabeleceu 31 funções, que seriam a base dessas histórias. Mas nem todos os contos apresentam necessariamente todas as 31 funções listadas. Em “Barba Azul”, pode-se notar a presença de várias delas, como veremos a seguir.

Propp denominou situação inicial o momento da história em que são apresentados os personagens principais. É também a sugestão de um tempo e espaço indeterminados, geralmente marcados pela expressão “Era uma vez...”. A situação inicial de “Barba Azul” apresenta ao leitor o vilão e sua futura vítima: Barba Azul, um homem solteiro e muito rico, manifesta interesse em se casar com uma das filhas de sua vizinha, uma “aristocrata de alta estirpe”. Há, porém, além da barba azul do pretendente, um outro forte motivo para a recusa das jovens cobiçadas: Barba Azul, “segundo se dizia, casara-se várias vezes e ninguém sabia que fim levaram suas mulheres” (p. 114). Aqui, pode-se apontar a função denominada interdição, pois o desaparecimento misterioso das esposas anteriores do homem funciona como um alerta de perigo, tanto para a futura vítima quanto para o leitor.

A função que possibilita a aproximação da futura vítima com o leitor é a transgressão. No conto em questão, as jovens, mesmo cientes do passado obscuro de seu pretendente, aceitam seu convite para passar uma semana em uma de suas casas de campo. Divertem-se tanto que a irmã mais nova, iludida pelo luxo, acaba aceitando se casar com o vilão. A menina abre mão do bom-senso e se deixa conquistar pelo adversário. Assim, cumprem-se mais duas funções designadas por Propp – o logro e a cumplicidade. O “agressor” engana a vítima, iludindo-a com “festas, bailes, pequeniques, caçadas, pescarias e jogos” (p. 114). Esta, por sua vez, deixa-se enganar e “conclui com o Agressor um pacto que resultará em dano próprio”: o casamento (PORTELA, 1976: 133).

Com o casamento, a moça vai viver com o marido, afastando-se da proteção da família. Tal passagem do conto pode ser identificada com a função da ausência, pois o fato de estar sozinha com Barba Azul revela uma situação de ameaça, de perigo. Há um momento em que o vilão se afasta para uma viagem de negócios, deixando a esposa sozinha com a irmã mais velha. O marido, porém, faz um teste com a moça: entrega-lhe um molho de chaves, dentre as quais há uma que jamais deverá ser usada, sob pena de despertar a sua ira. Podemos ver essa restrição como uma nova interdição, desta vez vinda diretamente do agressor. A jovem esposa se esforça para manter sua palavra, mas a curiosidade feminina fala mais alto e a leva a uma nova transgressão. Ela vai até o fundo da galeria e abre a porta proibida, descobrindo os corpos degolados das esposas anteriores de Barba Azul. Há, com essa descoberta, o rompimento do equilíbrio, o que pode ser associado à função do dano e/ou carência. Antes de sair da sala, deixa a chave proibida cair no chão. A queda gera uma reveladora mancha, que a menina não consegue remover. Essa mancha funcionará como a denúncia da transgressão.

A chave, nas histórias de amor, costuma assumir conotações românticas. Aqui, porém, ela simboliza o proibido e encerra a prova da transgressão. Barba Azul regressa inesperadamente e confronta a esposa. Esta, nervosa, entrega-lhe a chave com a mancha denunciadora. Ao se certificar da traição, o marido revela que a desobediência da esposa será paga com a vida, e pega a espada para degolá-la. Ela, porém, pede um tempo para rezar antes de morrer, e o vilão o concede. É nesse momento que se dá a mediação, pois a moça volta para o seu quarto, conta toda a história à irmã e pede ajuda. A irmã mais velha age, nesse conto, como uma espécie de doador, pois auxilia a heroína no momento de suspense e luta.

A única solução encontrada pelas irmãs é aguardar os irmãos mais velhos, que haviam prometido uma visita para aquele dia. Enquanto a mais velha observa, no alto da torre, a estrada na qual chegariam os salvadores, a esposa de Barba Azul aguarda, amedrontada, a chegada do marido, que sobe as escadas para degolá-la. Esse é um momento de forte suspense no conto, que culmina na luta – o confronto entre o vilão e a heroína, quando ele finalmente se aproxima dela e se prepara para matá-la. É a irmã mais velha quem vê a aproximação dos salvadores e acena para eles, pedindo por socorro. Quando o vilão está prestes a degolar sua vítima, os irmãos da heroína adentram o aposento e matam o malfeitor. Nesse trecho ocorre a função da vitória, que é o momento em que o agressor é vencido pelo herói.

Outras funções levantadas por Propp podem ser identificadas no desfecho do conto, como o reconhecimento, a descoberta, a transfiguração, o castigo e o casamento. O vilão é desmascarado e morto. A jovem viúva herda toda a fortuna do falecido marido e a gasta com a irmã, os irmãos mais velhos, e o segundo marido.

No conto analisado, a personagem principal é o vilão, Barba Azul. Este apresenta uma certa dualidade, pois, apesar de toda a riqueza que possui e de seus bons modos, possui também uma característica física incomum – a barba azul – e um aspecto não resolvido do passado – o desaparecimento das esposas. O luxo e os galanteios são recursos do vilão para se aproximar da vítima e conquistá-la. Depois de casado, submete a esposa a um teste letal: entrega-lhe a chave proibida, já na esperança de que ela o desobedeça. Trata-se de um vilão com aspectos de serial killer, possivelmente inspirado em casos reais, pois

Segundo alguns estudiosos o criador de Barba Azul se inspirou no fidalgo francês Gilles de Rais, que no século XV exterminou dezenas de crianças com requintes de perversidade. Para outros, o modelo da personagem foi Henrique VIII, soberano inglês que se casou seis vezes e mandou matar duas de suas mulheres. E outros ainda optam pelo bretão Comorre, o Maldito, que no século VI assassinou quatro esposas grávidas; a quinta, Tryphine, escapou e denunciou.

(PHILIP, 1998: 115)

O conto parece conter um caráter pedagógico, no sentido de orientar as moças a uma reflexão maior na escolha de seu futuro marido. O quarto onde estão pendurados os corpos das esposas de Barba Azul representa o horror que permanece escondido na beleza da propriedade do vilão. É mais uma forma de reforçar que as aparências enganam. Há também a questão da curiosidade: se a jovem esposa não se entregasse ao desejo de transgredir a ordem do marido, não seria condenada à morte. Os grandes heróis da história são os irmãos da vítima, que exercem seu papel de irmãos mais velhos, matando o opressor da jovem. Isso pode ser visto como um alerta para que as jovens respeitem seus irmãos mais velhos, que devem zelar por sua honra e integridade.

Como foi dito anteriormente, nem todas as funções levantadas por Vladimir Propp foram identificadas no conto “Barba Azul”. Porém, pela análise realizada, pode-se notar a validade e a importância do esquema básico de Propp.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PERRAULT, Charles. “Barba Azul”. In: Volta ao mundo em 52 histórias. Tradução de Hildegard Feist. Narração: Neil Philip. São Paulo: Cia das Letrinhas, 2005, pp. 114-117.

PORTELA, Eduardo e outros. Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976.

Modernismo:

Análise do conto Lisetta, de Alcântara Machado

Brás, Bexiga e Barra Funda é uma obra que, através de contos leves, apresenta um olhar sobre um aspecto do cotidiano paulista da década de 20 – o dia-a-dia dos imigrantes e descendentes de italianos. No prefácio do livro, intitulado “Artigo de Fundo”, o autor define os textos que compõem o trabalho:

Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram notícias. E este prefácio, portando, também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo.

(MACHADO, p.3)

Tal afirmação já demonstra a transposição de cenas do cotidiano para a obra literária, aspecto que marcou a produção do livro em questão. Os contos tem seu conteúdo marcado por episódios de rua, cenas do cotidiano pobre de São Paulo. Ainda no “Artigo de Fundo”, Machado explica a importância dos imigrantes italianos na construção da identidade do país e, sobretudo, da cidade de São Paulo. Esse é o ponto norteador deste livro, como o próprio título já denuncia – Brás, Bexiga e Barra Funda são bairros de São Paulo que são conhecidos, até hoje, por carregarem a tradição italiana. Nas palavras de Bosi:

Voltado para a vida da sua cidade, Alcântara Machado soube ver e exprimir as alterações que trouxera à realidade urbana um novo personagem: o imigrante. O enxerto que o estrangeiro, sobretudo o italiano, significava para o tronco luso-tupi da antiga São Paulo produzira mudanças de costumes, de reações psicológicas e, naturalmente, uma fala nova a espelhar os novos conteúdos.

(BOSI, 2006: 374)

No conto “Lisetta”, pode-se notar vários aspectos da modernidade da obra de Alcântara Machado. O texto é muito curto, possui linguagem simples e aborda um tema comum, uma cena corriqueira do cotidiano:

Quando Lisetta subiu no bonde (o condutor ajudou) viu logo o urso. Felpudo, felpudo. E amarelo. Tão engraçadinho.

Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pé diante dela.

Lisetta começou a namorar o bicho. (...)

(MACHADO, p.25)

Os aspectos ressaltados acima conferem à obra um caráter de notícia, de relato de um acontecimento comum. O ambiente onde se passa boa parte do enredo é um bonde, ou seja, um transporte coletivo. É um local onde se pressupõe a presença de várias pessoas, pertencentes a diferentes “níveis” sociais. O bonde está em movimento durante toda a cena que Lisetta protagoniza com o urso, o que reforça o caráter corriqueiro do enredo e o aproxima da notícia, de acordo com a definição dada pelo próprio autor no prefácio. O texto se encaixa no objetivo de “fixar tão-somente alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana desses novos mestiços nacionais e nacionalistas. É um jornal. Mais nada. Notícia. Só". (MACHADO, p. 4-5). Dessa forma, Machado segue os passos de Oswald de Andrade e Juó Bananere, pioneiros da crônica de imigração na imprensa paulista.

Outro aspecto interessante é a condição social das personagens principais. Lisetta e sua mãe são pobres, o que fica explícito nas seguintes passagens do texto:

Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pé diante dela.

(...)

Lisetta como compensação quis sentar no banco. Dona Mariana (havia pago um passagem só) opôs-se com energia e outro beliscão.

(MACHADO, p.27)

É a impossibilidade de ter um urso como o da menina rica que faz com que Lisetta o deseje com tanta força. Ela fica encantada quando vê o urso sentado “no colo da menina de pulseira de ouro e meias de seda” (p. 25). Esta, notando a inveja da menina pobre, decide provocá-la, exibindo o brinquedo.

A linguagem é outro ponto de destaque do texto, pois é usada de forma dinâmica e visual. O narrador não privilegia a norma culta e seu discurso tem um tom natural e conciso. O autor evita fazer digressões discursivas, pois estas quebrariam o ritmo da narrativa. A história é narrada de forma simples e a linguagem está mais próxima da crônica que do conto. Vale ressaltar a forte presença de expressões italianas e da modalidade informal da língua, sobretudo nos diálogos:

Hã! Hã! Hã! Hã! Eu que...ro o ur...so! O ur...so! Ai, mamãe! Ai, mamãe! Eu que...ro o... o... o... Hã! Hã!

— Stai ferina o ti amazzo, parola d'onore!

— Um pou...qui...nho só! Hã! E... hã! E... hã! Um pou...qui...

Senti, Lisetta. Non ti porterò più in città! Mai più!

(MACHADO, p.26)

As falas da mãe de Lisetta apresentam uma mistura do português com expressões italianas, o que era comum dentre os imigrantes e seus descendentes. Já as falas da menina, tentam se aproximar da linguagem da criança, apresentando muitas palavras no diminutivo e o vocativo “mamãe” no final das frases: “Olha o ursinho que lindo, mamãe!

Lisetta é uma menina pobre que vê no urso da menina rica um objeto de desejo. Sua necessidade, porém, não é compreendida pela mãe. O adulto não consegue compreender o sofrimento da criança e, na ânsia de diminuir o escândalo causado por esta, acaba gerando mais sofrimento, castigando e humilhando.

Pode-se notar também a preocupação do autor em delimitar o tempo e o espaço da narrativa na seguinte passagem do conto:

Lisetta sentia um desejo louco de tocar no ursinho. Jeitosamente procurou alcançá-lo. A menina rica percebeu, encarou a coitada com raiva, fez uma careta horrível e apertou contra o peito o bichinho que custara cinqüenta mil-réis na Casa São Nicolau.

(MACHADO, p. 26)

Ao citar o valor do objeto de desejo de Lisetta e indicar o local da compra, uma conhecida loja da época, o autor reforça a contemporaneidade da obra.

Lisetta faz um verdadeiro escândalo no bonde, na esperança de obter a permissão de tocar no urso. A mãe, muito irritada, pede desculpas à mãe da menina rica e castiga a filha com beliscões. A dona do urso, mesmo depois de descer do bonde, continua a provocar Lisetta, erguendo-o para que a menina visse. Trata-se aqui de uma visão não-idealizada da criança. Temos uma menina que inveja o urso da outra e o deseja tanto que acaba fazendo uma cena ridícula em um transporte coletivo. De outro lado, temos uma menina que sente prazer em exibir para Lisetta o objeto que esta deseja e não pode possuir. Essa visão sobre a criança fica clara também em outras passagens do texto, como a descrição dos irmãos de Lisetta: “O resto da gurizada (narizes escorrendo, pernas arranhadas, suspensórios de barbante) reunido na sala de jantar sapeava de longe” (MACHADO, p. 27).

Em casa, Lisetta sofre mais castigos, até que recebe de Ugo um presente – um ursinho de lata. Repleta de alegria, a menina pega o urso e, aos berros, tranca-se no quarto.

Todo o conto é trabalhado de forma simples, com personagens comuns e situações próprias do cotidiano paulista da década de 20. O bonde, um dos símbolos do progresso, tão forte na época, tem destaque no texto. O autor opta pela síntese para desenvolver um texto dinâmico e curto, o que é bem diferente do estilo das escolas anteriores – romântica e parnasiana. Não é à toa que Alfredo Bosi se refere a Machado como “O prosador do Modernismo paulista”. Segundo Bosi, “foi Antônio de Alcântara Machado quem por primeiro se mostrou sensível à viragem da prosa ficcional, aplicando-se todo a renovar a estrutura e o andamento da história curta” (BOSI, 2006: 374).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006).

MACHADO, Antônio de Alcântara. Brás, Bexiga e Barra Funda. Online: disponível na internet via http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bi000005.pdf