ATENÇÃO

TODOS OS TEXTOS AQUI POSTADOS POSSUEM COMPROVAÇÃO DE AUTORIA!
"É isso: tudo está ao alcance do homem e tudo lhe escapa, em virtude de sua covardia... Já virou até axioma. Coisa curiosa a observar-se: que é que os homens temem, acima de tudo? 'O que for capaz de mudar-lhe os hábitos': eis o que mais apavora..."

Dostoiévski

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

"Os eleitores são os palhaços"

A cada quatro anos, milhões de brasileiros vão às urnas escolher os seus representantes, que governarão o país. E, em todo ano de eleição, as características são sempre as mesmas: candidatos cheios de boas intenções, prometendo melhorar a vida de todas as pessoas, distribuindo abraços e posando para fotos. Só que tudo isso acaba quando eles são eleitos. Se esquecem completamente daqueles que os colocaram no poder.
Nessas eleições um fato teve grande repercusão e gerou uma série de críticas. Francisco Everaldo Oliveira Silva, o palhaço Tiririca, foi eleito deputado federal com mais de um milhão e quinhentos mil votos. Foi o segundo maior número da história. Durante sua campanha ele usou o 'slogan': "Vote no Tiririca, pior do que tá não fica". "Palhaçada"? Não. Realidade.
O atual cenário político brasileiro é marcado por esquemas de corrupção e por governos ineficientes, que muito pouco fazem para melhorar a condição de vida da população. E, a cada gestão, a situação se torna pior, fazendo com que as pessoas acreditem sempre menos nos políticos e almejem por mudanças. Foi justamente o que ocorreu nessas eleições.
Enquanto a maioria dos candidatos se preocupou em fazer belos discursos e incontáveis promessas, Tiririca foi sincero ao se mostrar totalmente inexperiente para ocupar o cargo de deputado e também ao criticar o sistema. Essa postura sincera foi o que fez a diferença nas urnas. As suas piadas durante as propagandas eleitorais não enganaram ninguém e a população soube reconhecer isso. Os eleitores enxergaram que eles eram os palhaços para aqueles políticos que iludem a todos com uma boa oratória mas que, na verdade, riem nas suas costas.
A crescente participação de candidatos inusitados e o uso do humor em suas campanhas são formas de criticar os atuais governantes e o sistema político brasileiro. A eleição de Tiririca confirma o descontentamento da população com os candidatos que se comportam de maneira séria na frente dos eleitores e que, no entanto, fazem de seus governos verdadeiros circos.

Marcus Dutra, 17 anos, Monte Santo de Minas-MG

RESUMO: Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett

VIAGENS NA MINHA TERRA

Almeida Garrett

CONSIDERAÇÕES SOBRE A OBRA:

v Viagens na minha terra foi publicado nos anos de 1843 e 1846, na Revista Universal Lisboense.

v A narrativa se desenvolve em dois planos: o primeiro é a viagem – real e simbólica – que Garrett faz até o vale de Santarém; o segundo é a novela “A Menina dos Rouxinóis”, que passa a ser contada a partir do capítulo X.

v “Estabelecendo-se a relação entre a novela e o restante da obra, observa-se que a intenção de Garrett, em Viagens na minha terra, é servir-se de um diálogo crítico e, através dele, apontar as causas que conduziram o país a uma crise cada vez mais aguda”.*

v “Instrumento para a reflexão de seu autor, as Viagens não só modernizam a prosa portuguesa, extirpando-lhe os vícios retóricos da grandiloquência, como também traz em seu bojo a marca de uma lúcida consciência dos problemas que afligem seu país”.*

v A novela atua como metáfora do sentido da própria viagem. Assim, seus personagens possuem caráter simbólico na narrativa:

PERSONAGENS DA NOVELA:

CARLOS E FREI DINIS

Pai e filho representam D. Quixote (espiritualismo) e Sancho Pança (materialismo) em fases diferentes de suas vidas. Frei Dinis é, inicialmente, materialista. Somente diante do remorso pelo pecado cometido espiritualiza-se, tornando-se um frade austero. Carlos, ao contrário, luta pelos ideais do liberalismo e, depois de descobrir que é filho do frade, foge e se torna barão (materialista). Por isso, Helder Macedo afirma que estes personagens são “espelhos, imagens inversas um do outro”.

JOANINHA E GEORGINA

Representam o ideal moral positivo. Segundo Helder Macedo, Joaninha seria a essência do bem inerente às sociedades tradicionais – o arquétipo de Portugal – e Georgina, a essência do bem inerente às “sociedades modernas – arquétipo do progresso no século XIX que era a Inglaterra do liberalismo triunfante”.

DONA FRANCISCA

Representa Portugal e “indica a imprudência com a qual o liberalismo foi assumido em Portugal: graças à falta de visão dos defensores do liberalismo, o país, impotente, assiste a sua destruição”.*

*MOISÉS, Massaud (dir.). A literatura portuguesa em perspectiva: Romantismo e Realismo. vol. 3. São Paulo: Atlas, 1994, pág. 40.

MOISÉS, Massaud (dir.). A literatura portuguesa em perspectiva: Romantismo e Realismo. vol. 3. São Paulo: Atlas, 1994, p. 39.

O LIVREIRO DE CABUL: uma análise antropológica

Ao ir embora, disse a mim mesma: isto é o Afeganistão. Seria interessante escrever um livro sobre esta família. (Asne Seierstad)

Eu me pergunto se Asne Seierstad é cega (...) Seus olhos europeus não conseguiram ver o que está acontecendo à esquerda e à direita?

(Shah Muhammad Rais)

1- Tema, métodos e objetivos da pesquisa:

O trabalho antropológico pode ser resumido como uma tentativa de compreender e fazer compreender a lógica interna de determinada sociedade ou grupo. Para tal, realiza-se, na maioria dos casos, o que se denomina trabalho de campo. Este consiste em um período de convivência do etnólogo com o grupo a ser estudado.

Malinowski (1978) afirma que o antropólogo deve observar atentamente a vida dos ‘nativos’ – como denomina os pertencentes ao grupo estudado – e registrar fielmente tudo o que for contemplado em campo, bem como as histórias, fictícias ou não, que lhe forem relatadas. O resultado da pesquisa de campo é a etnografia, um texto que relata o modo de vida dos nativos, a compreensão do etnólogo sobre ele e a explicação deste sobre a lógica dos costumes, pensamentos e atitudes nativas.

O texto que se segue não se trata de uma etnografia propriamente dita, mas de uma discussão acerca da pesquisa publicada em livro pela jornalista norueguesa Asne Seierstad. Seu livro, O livreiro de Cabul, gerou polêmica em todo o mundo e ganhou uma resposta a altura. Trata-se de Eu sou o livreiro de Cabul, escrito por Shah Muhammad Rais, o livreiro cuja família foi estudada e descrita por Asne.

Baseada nas discussões das aulas de Antropologia Cultural do semestre que se encerra, proponho-me a discutir, nesta redação, a relação entre a pesquisa de Seierstad e o fazer antropológico. Pretendo, também, discutir os métodos utilizados pela autora e as afirmações feitas por ela em seu livro, contrastando-as com a bibliografia do curso e com a versão de Shah Muhammad Rais.

2- O livreiro de Cabul: romance, jornalismo ou etnografia?

Asne Seierstad é jornalista e recebeu muitos prêmios por seu desempenho profissional. Dentre eles, pode-se destacar o Grande Prêmio Norueguês de Jornalismo, em 2003. Mas seu verdadeiro sucesso começaria durante uma reportagem no Afeganistão, quando conheceria o livreiro que mudou sua vida. Trata-se de Shah Muhammad Rais, o Sultan Khan de O livreiro de Cabul.

Foi na livraria no centro de Cabul que conheceu o “patriota afegão, muitas vezes decepcionado com seu próprio país” (SEIERSTAD, 2009:7). Em meio a livros e conversas, uma amizade se inicia e, com ela, a ideia que lhe poria fim: Asne decide escrever um livro sobre a “família Khan”.

A pesquisadora é bem recebida na família do livreiro e lá permanece, por cinco meses, coletando material para seu livro. Nesse tempo, assume a posição de um antropólogo, pois sua função é ver, ouvir e registrar o maior número possível de fatos relevantes para serem apresentados à comunidade europeia.

Assim como o antropólogo, a jornalista se prepara para a pesquisa de campo, levando computador, blocos de anotações, canetas, celular, etc.. Passa, também, por dilemas de antropólogo, como na dificuldade em registrar tudo o que vê e ouve e na difícil comunicação com seus “nativos”. Observemos os seguintes trechos da obra:

Contavam-me coisas quando tinham vontade, não quando eu perguntava. Não era necessariamente quando eu estava com o bloco de anotações a postos que eles estavam a fim de falar; podia ser durante uma ida ao bazar, num ônibus, ou talvez tarde da noite, deitados no tapete.

(...) Eu não dominava o dari, dialeto persa falado pela família Khan, porém, vários membros da família sabiam falar inglês. (SEIERSTAD, 2009:9)

Podemos relacionar o trabalho de Asne Seierstad com as funções definidas por Roberto Cardoso de Oliveira em seu texto “O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever”. Ao penetrar numa cultura extremamente diversa da sua e expor seus costumes e, o mais importante, sua visão de mundo, Seierstad se propõe a elaborar um trabalho que se encaixa nos moldes antropológicos.

O antropólogo, porém, deve estar alerta. Ao adentrar um grupo de estudo, o pesquisador já tem concepções preestabelecidas sobre esta ou aquela atitude de seus informantes. Mas o trabalho do etnólogo é justamente explicar a lógica do sistema estudado, ou seja, tentar enxergar o mundo pelo ponto de vista do nativo. E, neste ponto, a jornalista norueguesa deixa a desejar.

Logo no início de seu livro, Asne afirma que sua obra é um misto de ficção e realidade, e que não se propõe a estudar uma típica família afegã, mas sim uma família incomum para a sociedade na qual se insere. Em seu texto, porém, a autora não deixa claro quais são os pontos ficcionais e quais são os reais, além de dar maior ênfase a questões como o tratamento às mulheres, o sistema de casamentos e o conflito dos jovens, deixando de lado os traços distintivos da “família Khan”.

As histórias relatadas pela jornalista levam o leitor a uma complexa reflexão acerca da cultura muçulmana. Entretanto, a autora não se compromete a explicar os propósitos deste ou daquele costume, fazendo de seu texto uma mera reprodução do senso comum. O que marca sua obra é justamente aquilo que denominou caráter ficcional, ou seja, a forma romântica[1] com que trata os conflitos pessoais de suas personagens reais, muitas vezes trazendo fatos ou sentimentos que não correspondem à realidade do que foi pesquisado, como acusa Rais.

Para melhor compreendermos a proposta de Seierstad e seus pontos falhos, analisemos mais detalhadamente sua obra.

2.1- Em defesa da mulher!

Sem dúvidas os costumes e tradições muçulmanos chocam os ocidentais no que toca ao tratamento às mulheres. Não é difícil para uma mulher ocidental sentir-se revoltada mediante questões como o uso do véu e da burca, a passividade da mulher na negociação do casamento, a total submissão ao marido, dentre outras polêmicas da cultura afegã. Asne Seierstad também não se calou diante de tais costumes.

O livreiro de Cabul dá um espaço privilegiado à mulher, tornado-a protagonista de um drama nacional, porta-voz de uma sociedade injusta. Assim, Seierstad descreve a sofrida trajetória de suas mulheres/personagens. Observemos como a autora define algumas delas:

Sharifa: É a primeira esposa do livreiro, rejeitada aos cinqüenta anos, quando o marido resolve procurar uma segunda esposa “que o mantenha jovem”.

Sonya: É a pobre eleita para ocupar o cargo de segunda esposa de “Sultan Khan”. Segundo Asne, a menina se casa aos dezesseis anos, contrária à sua vontade. “Sulthan” também teria subornado o pai da moça para poder dormir com ela antes do casamento, com o intuito de prepará-la para a noite de núpcias.

Leila: O retrato da maltratada e submissa menina afegã. Ainda solteira aos dezenove anos, é a “criada” da casa.

Saliqa: Menina que comete o delito de receber cartinhas de um admirador secreto e é duramente castigada pela família.

Seierstad quase faz de seu texto um tratado de defesa às mulheres. Não digo, aqui, que esteja errada, mas que foge, de certa forma, à proposta antropológica. No impulso de denunciar o que, para ela, seria uma injustiça, a jornalista acaba perdendo o foco de sua pesquisa e lançando mão de recursos não muito éticos.

A autora sabia, a todo instante, que não estava lidando com personagens fictícios. Mesmo assim, relata situações constrangedoras com precisão e, em alguns casos, segundo Rais, insere elementos ficcionais que comprometem a credibilidade da família.

Ao relatar o episódio de Saliqa, por exemplo, Asne revela a intimidade de uma jovem afegã, comprometendo sua reputação. Dentro da tradição afegã, uma moça que troca bilhetes de amor com um desconhecido não merece respeito. Menos ainda uma jovem que mantenha relações sexuais com o noivo antes do casamento, como foi dito de Sonya. Os pseudônimos dados pela autora não dão conta de proteger a identidade das mulheres em questão – afinal, ela está se referindo à família do maior livreiro de Cabul.

Em Eu sou o livreiro de Cabul, Shah Muhammad Rais condena tal atitude da jornalista, dizendo que “em sua ignorância, Asne Seierstad omite a catastrófica realidade dessas mulheres; ela ilude as pessoas de todo o mundo quando as leva a acreditar que homens como 'Sulthan Khan', e não os soldados russos, o Talibã, a al-Qaeda e todos os anos de guerra civil são os culpados pela sua desgraça”. Segundo o livreiro, Asne erra ao dizer que as mulheres afegãs são reprimidas, porque, na verdade, elas são protegidas. Ele explica que na cultura afegã a mulher é tão preciosa que deve ser guardada. Por isso, protegem seus rostos e corpos da volúpia masculina, com véus e burcas.

Outro ponto discutido por Rais é a posição de Seierstad quanto ao casamento nos moldes afegãos. Segundo a autora, o casamento pouco tem a ver com amor e este pode até ser interpretado como um crime grave, passível de punição com a morte. Ainda assim, relata vários episódios amorosos de mulheres e moças, comprometendo-as socialmente. Além disso, em seu livro, Rais nos dá a explicação lógica que faltou no texto da norueguesa sobre o esquema do casamento no Afeganistão. Para ele, não se trata de uma negociação, mas de uma demonstração de desejo, respeito e poder, representada no dote. Explica também que a noiva não é obrigada a aceitar o noivo escolhido pelos pais e, se o faz, é porque acredita que estes sabem o que é melhor para ela.

O que faltou a Asne foi relativizar as questões que, para ela, já estavam tão definidas como erradas ou absurdas. O único momento em que tentou enxergar o mundo pela perspectiva de uma mulher afegã foi ao descrever o uso da burca. Mas, ao que parece, não conseguiu chegar à conclusão de que sua compreensão ocidental do modo de vida daquelas mulheres jamais poderia ser comparada à visão de quem está dentro do sistema, e o sente na própria pele.

2.2- Realidade x ficção:

Como já foi mencionado, a própria autora assume ter mesclado elementos fictícios aos fatos reais colhidos em sua pesquisa. Porém, além de confundir o leitor por não explicitar as fronteiras da realidade em seu texto, Seierstad transforma seus informantes em personagens de um romance, atribuindo-lhes os sentimentos que considerar relevantes a cada discussão.

Desse modo, podemos observar o caráter dual que Rais – ou Sulthan Khan – apresenta na narrativa da jornalista. O livreiro é descrito ora como um homem esclarecido e liberal, ora como o tirano senhor da família Khan. Sobre esse ponto, Rais diz: “Da forma como sou descrito por Asne Seierstad, o título de seu livro devia ter sido O carniceiro de Cabul.”

Da mesma forma, atribui ao filho mais velho de Rais, “Mansur”, um caráter duvidoso e pensamentos libidinosos que envergonhariam qualquer muçulmano. Mais uma vez, o livreiro contra-ataca, dizendo: “Quando isso for lido no Afeganistão, meu filho não terá mais lugar na sociedade, será estigmatizado como um homem indigno que vive pensando em molestar meninas de rua”.

Outra vítima da implacável mão da jornalista é a irmã mais nova do livreiro, “Leila”. A moça é transformada, na obra de Seierstad, em símbolo da opressão feminina. É a Cinderela que sonha deixar a casa do irmão malvado para se casar com um homem que a respeite. Mas, no final das contas, acaba prometida a um noivo que jamais lhe dará valor.

Ao confundir realidade e ficção, moldando os fatos a seu critério, Asne Seierstad age de forma etnocêntrica, segundo a qual, como diz Everardo Rocha, “nosso grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência” (ROCHA, 1988:7). Asne pensa e sente a cultura afegã a partir de seus próprios padrões, construindo um texto mais voltado para o entretenimento que para fins antropológicos.

Ainda segundo o supracitado autor, “Na nossa chamada “civilização ocidental”, (...) existem diversos mecanismos de reforço para o seu estilo de vida através de representações negativas do outro” (ROCHA, 1988:15). Infelizmente, é o que podemos encontrar na obra da norueguesa. Ao condenar o uso de véus e burcas pelas mulheres mulçumanas, Seierstad defende que se vistam segundo padrões ocidentais. Defende também que os jovens tenham liberdade para fazer o mesmo. Mas, seria mesmo condenável a relutância na adoção de um modelo de vida produzido por outra cultura, que segue outra religião e acredita em coisas diferentes? Estariam os muçulmanos errados em tentar manter a sua tradição? Essa resposta Asne Seierstad não nos dá.

3- Nem tudo são espinhos:

Devemos ter a clareza de ressaltar que nem tudo são espinhos na obra de Seierstad. Em certos pontos, a autora deu conta da proposta antropológica, revelando-nos características para muitos desconhecidas da cultura afegã. Essas características estão relacionadas à sexualidade, tema polêmico em se tratando de islamismo.

A jornalista relata que a sexualidade está presente em diversas lendas e poesias afegãs. Conta também que muitas mulheres mantem relações secretas com homens e que, após a queda do Talibã, muitos policiais fazem vista grossa aos amantes. Outro ponto interessante é a disseminação do homossexualismo masculino no sudeste do Afeganistão. Essas relações se dão, principalmente, entre experientes comandantes e jovens soldados do exército. Segundo Seierstad,

Os comandantes não vivem apenas sua homossexualidade, a maioria tem esposa e um monte de filhos. Mas raramente estão em casa e passam a vida entre homens. Sempre há grandes dramas de ciúmes entre esses jovens amantes, não são poucas as vinganças mortais já encenadas por ciúme de um amante que se dividiu entre dois comandantes. (SEIERSTAD, 2009: 251).

4- Considerações finais:

O livro de Asne Seierstad, como já foi discutido, gerou grande polêmica entre os leitores. Isso ocorreu devido à falta de esclarecimento – ou, como alega Shah Muhammad Rais, de comprometimento profissional e gratidão – da autora, que representou a cultura afegã a partir de seus próprios padrões de certo e errado.

Asne errou ao não entrar “a fundo” na ideologia que se propôs a revelar. Não se pode fazer uma boa pesquisa antropológica sem considerar o ponto de vista dos “nativos”. Seierstad não tentou se colocar no lugar de Sonya quando disse que esta desistiu de aprender a ler, ou quando afirmou que a menina acordava mais tarde que as outras mulheres. Não levou em consideração a origem humilde da jovem esposa, que não lhe permitia nem a idéia de poder aprender a ler; não relatou que a menina acordava mais tarde porque passava a maior parte da noite amamentando seu bebê recém-nascido.

Asne Seierstad preenche seu livro com muito mais histórias do que poderia ter visto ou ouvido durante os cinco meses que esteve hospedada na casa do livreiro. E, para completar, publicou um texto capaz de arruinar a honra e a estabilidade da família, descrevendo até mesmo os corpos nus das mulheres “Khan”.

Rais, em seu livro/resposta, a acusa de ter dado pistas suficientes para que qualquer um saiba quem são os protagonistas de seu livro, apesar dos pseudônimos. Diz, também, que seu pseudônimo revela a imagem de tirano que a jornalista teria tentado construir dele, já que Sulthan, em português Sultão, demonstra soberania e Khan seria uma referência ao conquistador Gengis Khan.

O estudo da jornalista norueguesa foi, na verdade, uma forma de reforço da concepção ocidental sobre a cultura afegã, e não de esclarecimento. Na construção de sua “etnografia”, Seierstad se comportou como alguns antropólogos evolucionistas, considerando muito da tradição e dos costumes afegãos um atraso em relação ao ocidente. O mencionado esclarecimento, do qual o leitor sente falta, só virá com a complementação de Shah Muhammad Rais, na qual explicará a lógica interna de sua sociedade. No intento de construir uma defesa contra as ameaças produzidas pela escritora norueguesa, o livreiro de Cabul acaba construindo uma etnografia de seu próprio grupo.

Referências bibliográficas

MALINOWSKI, Bronislaw. “Tema, método e objetivo desta pesquisa”. In: Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. Editora Unesp.

RAIS, Shah Muhammad. Eu sou o livreiro de Cabul. Editora Bertrand Brasil, 2007.

ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo? São Paulo: Brasiliense, 1988.

SEIERSTAD, Asne. O livreiro de Cabul. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.



[1] Ao colocar o termo romântico, não me refiro ao período literário específico, denominado romantismo, mas à inserção de características relacionadas a tal movimento no texto estudado. Veremos, por exemplo, que a narração do conflito da personagem/informante Leila possui características românticas, como a eterna infelicidade, a impossibilidade de mudança, os sonhos frustrados, etc. Ou seja, Seierstad constrói para a personagem uma vida de Cinderela sem final feliz, na tentativa de explicitar o ‘mundo da mulher afegã’.

A REALIDADE EM PROSA:

breves olhares sobre a ficção de Alencar e Machado[1]

Paula Alves das Chagas.

Eu tenho a sensação de que a vida nos desafia permanentemente a poder contá-la. Que ela é mais vasta que a ideia que fazemos dela. Que ela não para nunca de nos confrontar com situações que nos ultrapassam completamente, mesmo que finjamos estar à altura delas, ou mesmo controlá-las.(...) temos o hábito de opor a ficção à realidade. Mas essa oposição é estúpida – e historicamente burguesa. Ela não faz justiça nem à realidade, nem à ficção. O que quero dizer é que realidade e ficção não se opõem. As ficções não param de fecundar a realidade e a realidade não deixa nunca de ser uma ficção em construção.

Grégoire Bouillier

É clássica a discussão acerca da relação entre ficção e realidade na literatura. Quais os limites entre o real e o imaginário? Em Iser, temos que “há no texto ficcional muita realidade que não só deve ser identificável como realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional” (1993, 385). Partindo dessa linha, resta-nos observar como se comporta a transposição – ou, antes, a imitação – do real para o campo ficcional. Este trabalho objetiva apontar aspectos dessa complexa relação em dois diferentes períodos literários, o romântico e o realista, tomando como suporte de análise quatro obras de grande relevância da literatura brasileira: Lucíola, de José de Alencar; Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Tanto o período romântico como o realista podem ser bem definidos, na literatura brasileira, pela obra de seus principais escritores: de um lado, temos a narrativa adocicada de José de Alencar e, de outro, seu oposto na erudição e ironia de Machado de Assis. O primeiro cai no gosto do público-leitor burguês com seus folhetins sentimentalistas, bem ao gosto romântico. É, portanto, justificável que o autor de Cinco minutos e Viuvinha tenha receio de assumir a autoria de Lucíola, sobretudo após a censura de As asas de um anjo. Isto porque, nessas duas obras, Alencar tenta traçar um perfil de mulher, que surge no lodo da prostituição e, através do verdadeiro amor, alcança a purificação.

Somando o desejo de se ocultar como autor à prática comum no romantismo de tentar convencer o leitor da veracidade da história narrada, Alencar cria um engenhoso jogo de autorias. “Tudo se passa como se o autor fosse Paulo, a personagem encarregada de narrar a estória, que teria feito chegar o enredo a G.M., na forma de cartas. De posse de tal material (...) ela teria construído o romance” (RIBEIRO: 2008, 78). Mais engenhosa ainda é a nota introdutória do livro, na qual G.M., senhora de cabelos brancos e avó de “uma gentil menina de 16 anos, flor cândida e suave, que mal desabrocha à sombra materna”, toma a pena em favor de Lúcia:

(...)

Deixe que raivem os moralistas.

A sua história não tem pretensões a vestal. É musa cristã: vai trilhando o pó com os olhos no céu. Podem as urzes do caminho dilacerar-lhe a roupagem: veste-a a virtude.

(...)

(ALENCAR: 1996, 13)

Antes mesmo que a história de Lúcia nos seja apresentada, temos um julgamento de seu caráter: é musa cristã! E não por acaso, seu nome de batismo é Maria da Glória. Os nomes distinguem os níveis do perfil de mulher traçado por Alencar. Lúcia é o corpo, a carne marcada pelos prazeres do luxo, pela perdição da sensualidade, pelo orgulho satânico da altivez feminina. Maria da Glória é a alma, a moral imaculada, o espírito devoto, a virgindade romântica.

A cortesã do Império é redimida pelo amor de Paulo e cede seu lugar a Maria da Glória. Paulatinamente, a virtude da alma vai sufocando a carne corrompida, até matá-la. Mas matar Lúcia não é garantia de felicidade para Maria da Glória, afinal, a sociedade não a vê pelo espírito, mas pela carne. A mulher prostituída não tem direito a um casamento, “sagrada instituição”, e, menos ainda, a gerar em seu corpo maculado um ser puro. A saída está na morte física da protagonista. A morte a santifica, reafirma seu caráter de “musa cristã” e eleva a outro plano o amor redentor que não pode concretizar em vida.

Com o lançamento de Lucíola, houve quem a tomasse por uma mera retomada de Marguerite Gautier, a famosa Dama das Camélias de Dumas Filho. É certo que a temática da prostituta redimida é comum às duas obras, mas os objetivos de Alencar com sua cortesã parecem ser bem mais amplos que os do autor francês. Lucíola é uma resposta à censura de As asas de um anjo. É uma discussão sobre as convenções sociais e, ao mesmo tempo, uma narrativa moralizadora. É reflexão do fazer literário de seu tempo. É o resgate do processo de conhecimento da realidade através do romance.

Tal processo se desencadeia cuidadosamente na obra de Machado de Assis, sobretudo nos três romances aqui estudados. Uma das principais marcas da narrativa machadiana é a quantidade considerável de citações que faz no decorrer do texto, ou seja, o constante diálogo com outras obras, outras “realidades” que, de alguma forma se relacionam com a “realidade” da sua ficção. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo, pode-se notar uma alusão à obra Cândido, ou o Otimismo, de Voltaire: “(...) Pangloss, o caluniado Pangloss, não era tão tolo como o supôs Voltaire”(ASSIS: 1991, 192). Esta curta e aparentemente ingênua frase, proferida pelo filósofo Quincas Borba em seu leito de morte, revela fortes sentidos quando confrontada com seu contexto. Saída da boca de um filósofo, em estado de loucura, dono de argumentos duvidosos e insuficientes e criador do Humanitismo – espécie de darwinismo social – a retomada do insistente filósofo otimista de Voltaire tem um tom altamente irônico.

Memórias Póstumas reserva-nos também perfis de mulher. Estes, porém, estão bem distantes do desenhado por Alencar. A primeira grande mulher que surge, cronologicamente, na vida de Brás Cubas nada mais é que uma cortesã. A “linda Marcela” amou-o “durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos” (ASSIS: 1991, 49). Não se trata, aqui, de uma redenção pelo amor; nem Marcela é Lúcia, nem Brás Cubas é Paulo. Enquanto que a “musa” de Alencar era um misto de carne e alma, Marcela parece ser toda carne. Sua mácula não está somente nos níveis físico e social, mas também no moral.

Outra figura feminina que marca a obra é Virgília, a mulher com a qual o defunto-autor tem seu relacionamento mais intenso e duradouro. É através dessa mulher que Machado evoca o tema da traição, tão comum em sua ficção. John Gledson, pelas palavras de Sevcenko, crê que

Essa compulsão traidora se revela quintessencial para a compreensão da história do país em múltiplas dimensões, seja por exemplo pelo modo como as elites traem o povo, os partidos traem seus ideais, os dirigentes traem suas responsabilidades, os proprietários traem seus dependentes, os arrivistas traem suas origens e os conservadores traem sua honra.

(GLEDSON: 2003, 19-20)

Virgília é a esposa adúltera; aquela que possui o matrimônio que é negado, por convenções sociais, a Lúcia, e busca o amor em outro homem. Seu perfil, tão diferente do da musa cristã de Alencar, começa a ser delineado desde o capítulo XXVII:

Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas (...). Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação.

(ASSIS: 1996, 66)

Outro forte contraste com Lucíola está em Sofia, principal figura feminina de Quincas Borba. Esta, mulher casada e muito atraente, desperta o fascínio do provinciano Rubião, amigo de seu marido. Mas não é com ele que Sofia trai Cristiano Palha; é com Carlos Maria, ou, antes, com os galanteios e a imagem deste. A traição não ocorre no nível físico, mas no mental. Sofia chega a sonhar com Carlos e tem “maus pensamentos”, que não lhe causam remorsos, pois

Não é só nas ações que a consciência passa gradualmente da novidade ao costume, e do temor à indiferença. Os simples pecados de pensamentos são sujeitos a essa mesma alteração, e o uso de cuidar nas cousas aperfeiçoa tanto a elas – que, afinal, o espírito não as estranha, nem as repele. E nestes casos há sempre um refúgio moral na isenção exterior, que é, por outros termos mais explicativos, o corpo sem mácula.

(ASSIS: 2007, 154)

O refúgio moral de Sofia é o “corpo sem mácula”, pois este permanece fiel, embora a alma já não o seja. Ocorre com ela o oposto do que perpassa Lúcia. Nesta, a alma é o refúgio, ao passo que o corpo está perdido e simboliza a corrupção social.

Algo semelhante ocorre com Capitu, a protagonista de Dom Casmurro. Por seu comportamento altivo, sua sensualidade, tão bem definida nos “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, “olhos de ressaca”, a esposa de Bentinho é digna de suspeita. Convencido da traição da mulher, Bento tenta provar que “o futuro estava inevitavelmente previsto no passado, ou seja (na lógica perversa do determinismo), que o efeito é a origem da causa” (MACEDO: 2005, 57). Seu intento se resume em provar que a Capitu adulta – leviana, em sua concepção – já estava contida na Capitu menina “como a fruta dentro da casca”.

Machado parece brincar a todo momento com esse jogo entre ficção e realidade. Prova disso é a construção de seus narradores: o primeiro é um defunto sem grandes realizações, que narra com forte dose de humor suas memórias póstumas; o segundo, onisciente, passeia pelas atitudes e sentimentos das personagens mostrando, não uma visão unilateral da história, mas suas possibilidades; por fim, com Bento Santiago, temos uma narração duvidosa, que objetiva provar a culpabilidade de Capitu e parte, justamente, do homem que se sente por ela traído. Sobre este último, Helder Macedo afirma que “é a grande síntese e a culminação estética da dialética machadiana sobre verossimilhança e verdade, determinismo e responsabilidade, inerente aos dois livros anteriores” (MACEDO: 2005, 57).

Os aspectos aqui observados – poucos, diante da grandiosidade das obras em questão – mostram uma forte preocupação dos autores, tanto no romantismo como no realismo, com a construção da relação entre história e ficção. Alencar, apesar do uso de um tema escabroso para a época (a vida de uma cortesã), dá-nos uma ficção de caráter pedagógico. A mulher prostituída, por mais virgem que mantenha sua alma, não tem direito a um final feliz em vida. Porém, perpassa toda a obra um forte diálogo com a história, com a sociedade de seu tempo, com a crítica literária. Em Machado, a reprodução do que Gledson denominou “realismo enganoso” marca um freqüente diálogo, não só com a história do país, com as falhas sociais, com o ambiente literário, mas com o próprio leitor, num constante jogo de sentidos. Jogo esse que demonstra o quanto são tênues as fronteiras entre o real e o imaginário na literatura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALENCAR, José de. Lucíola. Rio de Janeiro: Ediouro, 29ª ed., 1996.

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Ciranda Cultural, 2ª ed., 2008.

______. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: FTD, 2ª ed., 1991.

______. Quincas Borba. São Paulo: Ciranda Cultural, 2007.

DUMAS FILHO, Alexandre. A Dama das Camélias. Trad. Marina Guaspari. [s.l.]: Abril, s/d.

GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. São Paulo: Paz e Terra, 2003, pp. 13-35.

ISER, Wolfgang. “Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional”. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes. v.2. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983, pp. 384-416.

MACEDO, Helder. “Machado de Assis entre o lusco e o fusco”. In: SARAIVA, Juracy Assmann (org.). Nos labirintos de Dom Casmurro. Porto Alegre: PUC-RS, 2005, pp. 49-69.

RIBEIRO, Luís Filipe. “A virgindade da alma: Lucíola”. In: Mulheres de papel: um estudo sobre o imaginário em José de Alencar e Machado de Assis. Rio de Janeiro: Forense Universitária: Fundação Biblioteca Nacional, 2008, pp. 77-99.

VOLTAIRE. Cândido, ou o Otimismo. Trad. Antonio Geraldo da Silva. São Paulo: Escala, s/d.



[1] Lucíola, de José de Alencar; Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro, de Machado de Assis.

LITERATURA PORTUGUESA

AMOR DE TRANSIÇÃO:

Traços realistas em A queda dum anjo, de Camilo Castelo Branco

Camilo não vencera o conflito básico de sua concepção e condensação ficcionista da vida: toda a sua ação se trava entre o pecado e a penitência do amor, entre as prepotências de linhagem e o quadro caricatural da sordidez burguesa.

A. Saraiva e O. Lopes

O Romantismo Português, após um período altamente nacionalista, marcado pela obra de nomes como Garrett e Herculano, principia, no contexto da Regeneração, a ceder espaço a uma nova proposta, eminentemente ultrarromântica. É nessa linha que se desenvolve e consagra a novela passional de Camilo Castelo Branco, autor que, tanto em seus romances de cunho trágico como nas sátiras de costumes, refletiu e criticou os valores de seu tempo, bem como os princípios do período literário no qual se inseriu. É em textos como A queda dum anjo (1866), que Camilo demonstra com mais força os primeiros traços de um realismo balzaquiano, que estarão presentes também na obra de Júlio Dinis e, de forma mais desenvolvida, na linguagem e nos temas de Eça de Queirós.

Em A queda dum anjo, destaca-se a figura do anti-herói, representado em Calisto Elói de Silos Benevides e Barbuda, o morgado de Agra de Freimas. Trata-se de um tresmontano de tendência legitimista e afeito à leitura dos clássicos. Casado por conveniência com uma prima, a morgada de Travanca, vive modestamente na província de Miranda, cujo povo, diante da eloqüência e erudição do morgado, elege-o deputado. A chegada de Calisto a Lisboa marca o começo de uma “percuriente sátira da oratória parlamentar regeneradora e da indiferença governativa aos grandes problemas da maioria” (SARAIVA & LOPES: s.d., 825).

O descompasso do morgado torna-o uma figura ridícula para a sociedade lisboeta. Sua insistência na leitura de textos antigos, suas vestimentas ultrapassadas e os valores morais que defende acumulam duas funções na obra: criticar a idealização do passado português e marcar a ascensão de Calisto ao posto de anjo. Os primeiros capítulos do romance estão repletos de uma certa inocência provinciana, que não se deixa abater diante do progresso e da moda e defende-se através da crítica à ordem vigente.

A mulher surge, na narrativa, não mais como objeto de um amor sublime e purificador, mas como elemento provocador da decadência moral e política do “herói”. A paixão de Calisto por Adelaide quebra o paradigma romântico da religião do amor, na qual os jovens amantes são os mártires da tragédia. É, porém, com Ifigênia que o deputado conhecerá o amor e, já não se satisfazendo com o sentimento espiritualizado da novela passional, concretizará seus desejos através de um adultério. Ifigênia, definida pelo narrador como “a mulher-fatal” da história, é o ponto no qual culmina, segundo Regina Michelli, a “falência do Calisto-anjo puro, insensível aos prazeres mundanos, mas já anacrônico” e a “ascensão do Calisto-homem, adúltero, interesseiro, perdulário, mas integrado em uma sociedade cujo comportamento pauta-se, na prática, por esses atributos”.

A paixão em A queda dum anjo não é mais o sentimento sublime que enobrece os protagonistas e eleva-os à condição de heróis. O halo trágico não está mais na impossibilidade da realização pessoal, mas na conformidade com a convenção anteriormente inaceitável. Se na novela passional os amantes são mártires, sacrificados pelas imposições de uma sociedade que nega a concretização de seu amor, na sátira camiliana não encontram dificuldades em concretizá-lo, pois a punição não está no apartamento do casal, mas na conformidade com a corrupção moral e social, o que os leva ao descrédito, como frisa Raquel de Sousa Ribeiro.

Calisto não é o único que se deixa contaminar pelo progresso e pelos costumes de Lisboa. Teodora, que por muitas vezes foi descrita como uma “senhora de raro aviso” (p. 3), “estimabilíssima por virtudes” (p. 45), paga o adultério com a mesma moeda, unindo-se a um outro primo. Dos dois adultérios nascem crianças bastardas, frutos, ao mesmo tempo, da corrupção moral e da libertação das amarras sociais.

O morgado rompe com o código moralizante, adequa-se ao progresso, viaja a Paris e torna-se barão. Há, sem dúvidas, uma evolução do “herói do conto” à medida que ocorre sua integração e a perda do ridículo que caracterizava seu comportamento. Porém, é nessa perda que se caracteriza também a queda da condição de anjo da personagem, pois narrador e leitor sentem a perda do comprometimento, da responsabilidade, enfim, “do que havia de bom e desejável em suas idéias anteriores, em sua crítica à ordem vigente” (RIBEIRO: 1994, 68).

Com uma atenção balzaquiana às circunstâncias e ao comportamento das personagens, Camilo tece uma trama de negação dos paradigmas românticos. A narrativa, apesar de estar inserida na segunda fase do Romantismo português, já apresenta certos traços realistas, fruto da observação e da reflexão sobre uma sociedade resultante de um progresso acelerado. Nesse Portugal já não cabem os heróis e as tragédias ultrarromânticas. É necessário o surgimento de novos heróis ou, antes, anti-heróis que conduzam o pensamento para uma nova visão da sociedade portuguesa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRANCO, Camilo Castelo. A queda dum anjo. Biblioteca Digital: Coleção Clássicos da Literatura Portuguesa. Porto Editora. Online: disponível na internet via virtualbooks.terra.com.br/.../A_Queda_Dum_Anjo.htm

MICHELLI, Regina. “Caminhos da paixão e do amor na Literatura Portuguesa”. In: Soletras, nº 8. Disponível na internet via http://www.filologia.org.br/soletras/8/06.htm.

RIBEIRO, Raquel de Souza. “Camilo Castelo Branco”. In: MOISES, Massaud, dir. A literatura portuguesa em perspectiva: vol. 3, Romantismo e Realismo. São Paulo: Atlas, 1994, p. 62-70.

SARAIVA, António José & LOPES, Óscar. “O Romantismo sob a Regeneração” e “Camilo Castelo Branco”. In: História da literatura portuguesa. Porto: Porto Editora, s/d, p. 783-834.

Mais um olhar sobre Machado

A IDEIA DE RUÍNA EM MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

Memórias Póstumas pode ser considerado um divisor de águas na literatura machadiana. Trata-se de uma verdadeira revolução ideológica e formal. As personagens, muito humanas, assim como seus atributos, atitudes e infortúnios, confundem-se com a própria sociedade, com as “forças do inconsciente”, como marca Alfredo Bosi. A idéia de ruína ultrapassa o nível individual e se fixa em níveis impessoais.

Com Brás Cubas, Machado quebra o paradigma romântico. A ironia do defunto/autor acentua a fraqueza e a incoerência do indivíduo através do desprezo às idealizações românticas e da queda da onisciência do narrador. A trajetória do narrador/protagonista é a representação de um destino sem grandezas, atos heróicos ou missões cumpridas. É uma trajetória de negativas, de um homem que não se casou, não foi ministro, não alcançou a celebridade e, sobretudo, não deixou descendência que herdasse o “triste legado de nossa miséria”.

Como Brás, as personagens que o rodeiam estão marcadas pela decadência e pelas não realizações. A forte presença da “linda marcela” se esvai, assim como seu romance com o protagonista, e dá lugar a uma figura medíocre, maltratada pela “doença e uma velhice precoce”. A beleza e o frescor de Eugênia tornam-se pequenos diante de uma “imperfeição” física. “Por que bonita, se coxa?” – pergunta-se Brás Cubas – “Por que coxa, se bonita?”. A decepção do pai de Brás, ao ver decair o futuro que sonhava para o filho, leva-o à morte. Nhã-loló morre precocemente. Dona plácida, que lutou dignamente contra as tragédias que o destino lhe reservou, torna-se cúmplice de um adultério. Virgília perde os dois homens de sua vida. Quincas Borba morre louco. Não são apenas personagens; são reflexo de uma sociedade egoísta, ambiciosa, efêmera, hipócrita. São o avesso dos códigos tradicionais do Romantismo.

A mesma ruína perpassa os romances de Brás Cubas. O “primeiro amor” é regado pela ambição e esquecido em apenas seis dias de viagem. Mais tarde, uma Marcela desgastada, envelhecida, surge para delimitar a importância que o antigo romance possui nas lembranças do narrador. O encanto de Brás por Eugênia é abalado quando ele descobre que a moça é coxa de nascença. Nhã-loló morre antes que os planos do namorado se concretizem. Virgília o abandona para se casar com Lobo Neves e só mantém uma relação duradoura com Brás depois de casada com o outro.

Os valores de toda uma sociedade são questionados através das famosas personagens de Machado. Em suma, a constante presença da idéia de ruína no romance revela a mediocridade e a efemeridade da elite detentora do poder. Os valores da sociedade burguesa estão centrados na busca incansável pelo poder e pela satisfação individual. Ora é a criação de um emplasto, ou de uma nova doutrina filosófica; ora a busca de uma nomeação política, de um título de nobreza, de um casamento vantajoso. A ambição e o desejo de imortalidade marcam toda a obra. É uma sociedade em ruína, um retrato da fragilidade da existência humana.

Comentários sobre a obra de Manuel Bandeira

VIDA E OBRA: Manuel Bandeira

“Ontem, hoje, amanhã: a vida inteira,

teu nome é para nós, Manuel, bandeira.”

(Carlos Drummond de Andrade)

Manuel Cardoso de Souza Bandeira Filho não é apenas um poeta, não é apenas um homem. É força, graça, sensibilidade, humor. É sofrimento, é dor e, acima de tudo, inspiração. Alguém capaz de exprimir todo o seu íntimo em um único verso, que possui também um pouco da angústia do homem em geral. Verso que intitula um dos poemas mais belos e sinceros de sua carreira: “Vou-me embora pra Pasárgada”.

Nascido em Recife, no dia 19 de abril de 1886, mudou-se ainda jovem para o Rio de Janeiro, e depois para São Paulo, onde iniciou a Escola Politécnica. Acometido pela tuberculose, doença incurável em sua época, retorna ao Rio. Passa a viver assolado pelo fantasma da morte, privado de muitos desejos e prazeres. Desenganado, percorre as melhores casas de saúde do Brasil e da Europa, em busca de tratamento.

Dedica-se à arte da escrita e, em 1917, publica seu primeiro livro, A cinza das horas. Em um curto período de tempo, entre 1916 e 1920, perde a mãe, a irmã e o pai. Segundo José de Nicola, “todas essas fatalidades deixaram cicatrizes profundas na obra do poeta”.

Participa indiretamente da Semana de Arte Moderna de 1922, quando Ronald de Carvalho lê seu poema “Os sapos” e é vaiado pelo público. Em 1940, é eleito membro da Academia Brasileira de Letras.

A exemplo dos poetas românticos, retoma em sua obra temas como a infância, a saudade e a solidão, mas se mantém essencialmente modernista. É o poeta dos versos livres, da linguagem coloquial, da liberdade criadora.

Em 1966, publica Estrela da vida inteira, no qual está seu mais conhecido poema, “Vou-me embora pra Pasárgada”. Neste texto, Bandeira expõe toda a sua dor, a sua angústia na idealização de um lugar onde poderia viver tranquilamente, longe das limitações da doença. Eis um trecho da obra:

“Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada

(...)

E como farei ginástica

Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo

Subirei no pau-de-sebo

Tomarei banhos de mar!”

Contra todas as expectativas, Manuel Bandeira falece no dia 13 de outubro de 1968, aos 82 anos. Sobre si, disse apenas:

“Criou-me desde eu menino,

Para arquitetura meu pai.

Foi-se-me um dia a saúde...

Fiz-me arquiteto? Não pude!

Sou poeta menor, perdoai!”

“A biografia de Manuel Bandeira é a história de seus livros. Viveu para as letras...” (Alfredo Bosi)

v OBRAS:

Carnaval, O ritmo dissoluto; Libertinagem; poesias; A cinza das horas; Estrela da manhã; Poesias completas; Lira dos cinquent’anos; Estrela da tarde; Estrela da vida inteira, etc.

v PARA SABER MAIS:

CAMPEDELLI, Samira Yousseff & SOUZA, Jésus Barbosa. Literaturas Brasileira e Portuguesa: teoria e texto. São Paulo: Saraiva, 1ª edição, 2000, pp.361-362.

CEREJA, William Roberto & MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: Linguagens. São Paulo: Atual, 1ª edição, 2003, pp.394-395.

NICOLA, José de. Literatura Brasileira: das origens aos nossos dias. São Paulo: Scipione, 15ª edição, 1998, pp. 309-316.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 44ª edição, 2006, pp. 360-365.

Moliére


VIDA E OBRA: Moliére

Se ainda não assistiu, pelo menos você deve ter ouvido falar das grandes comédias teatrais. Elas são as grandes sensações da dramaturgia, afinal, quem é que não gosta de uma boa comédia? Porém, houve um tempo em que a comédia era mal vista na sociedade e o gênero “em alta” era a tragédia. Em meio a todo o preconceito de uma época, um homem foi capaz de lutar contra toda uma ideologia e levar um gênero só seu, a comédia de costumes, aos salões dos palácios reais. Esse homem, chamado Jean-Baptiste, imortalizou-se como Moliére.

“Ridendo castigat mores.” (Rindo corrigem-se os costumes.)

Moliére é o pseudônimo de um dos mais importantes dramaturgos da história do teatro francês, Jean-Baptiste Poquelin. Além de escrever belas peças, Moliére atuou e dirigiu, tendo sido líder de uma importante companhia teatral. A importância de sua obra é ímpar, considerando que foi a partir de sua comédia satírica que houve a quebra da dependência da mitologia grega na dramaturgia francesa.

Filho de artesão e órfão de mãe desde os dez anos, Poquelin ingressou no colégio jesuíta College de Clermont em 1633 e o deixou em 1639. Apaixonou-se pela arte da representação e lutou com o pai pelo direito de seguir a carreira teatral que, na época, era mal vista entre as ditas “pessoas de bem”. Por seu contato direto com o rei, teve maior facilidade para, em 1644, montar sua companhia teatral, a L’Ilustre Téâtre, que faliu dezesseis meses após sua estreia. A trupe era composta pela família de sua amante, Madeleine Bejart. Foi com a companhia que usou pela primeira vez o nome Moliére, inspirado em uma pequena aldeia do sul da França.

Com a falência da companhia teatral, Moliére foi preso, devido às altas dívidas contraídas. Saiu da prisão com a ajuda do pai e partiu em uma turnê como comediante itinerante por quatorze anos.

Em 1658, rompe relações com o Príncipe de Conti e passa a ser patrocinado por Monsier, irmão do rei. Apesar de ser amante da tragédia e ter um explícito preconceito contra as farsas, Moliére se destacou como comediante. Unindo suas duas principais habilidades, acabou por criar um gênero diferente, a comédia de costumes.

Suas obras se caracterizam pelas fortes críticas aos costumes da população francesa de sua época, sobretudo no que diz respeito à política e à religião. Em 1661, uniu-se a Armande, possível filha de Madeleine, e sua companheira até o dia de sua morte.

Moliére já estava doente quando Madeleine faleceu, em 1671. Como ironia do destino, o ilustre dramaturgo teve um colapso no palco, enquanto representava o papel principal de um de seus maiores sucessos, O doente imaginário. Faleceu mais tarde, em sua casa de Paris.

Após sua morte, Armande implorou ao rei que concedesse a Poquelin um enterro em cemitério, já que os profissionais do teatro eram vulgarizados e não tinham direito a ser enterrados junto dos demais mortos. A mulher conseguiu uma vaga para o falecido companheiro no cemitério dos não-batizados, realizando a cerimônia fúnebre à noite, para evitar escândalos. Mais tarde, em 1792, seus restos mortais foram transferidos para o museu dos Monumentos Franceses e, em 1817, para o cemitério de Pére Lanchaise, ao lado da sepultura de La Fontaine.

OBRAS:

A obra de Moliére é predominantemente formada de comédias de costumes, das quais as mais importantes são: Escola de maridos, Escola de mulheres, Tartufo e O doente imaginário. As críticas presentes em suas peças desagradaram a muitas autoridades políticas e religiosas, tornando o dramaturgo uma figura polêmica.

A obra Tartufo, por exemplo, deveria ter sido encenada pela primeira vez em 1664, mas foi censurada pela igreja. Tudo porque o personagem principal da comédia é um impostor (Tartufo) que envolve um rico senhor por suas artimanhas e termina por tomar tudo o que lhe pertencia. A crítica de Moliére foi contra a hipocrisia religiosa, mas a igreja alegou que ele ia contra a religião em si, proibindo as apresentações da obra.

Em 1667, tentou encena-la novamente, já modificada para atender aos interesses da igreja e sob o nome de O impostor. Ainda assim não conseguiu e, só em 1669, levou-a aos palcos, sob o formato que conhecemos hoje. Acredita-se que muitos pontos da obra foram alterados para que o autor conseguisse a liberação de seu trabalho.

MOLIÉRE NAS TELAS:

Recentemente foi lançado um filme baseado na vida e na obra de Moliére, intitulado “As aventuras de Moliére”. O filme, que conta com a participação de Romain Dures e Ludvine Sagnier, mistura fatos reais da vida do autor com passagens de O Tartufo, gerando uma obra bela e divertidíssima. Vale a pena conferir.

A maior ambição da mulher é despertar o amor”.

Um tolo que não diz palavra não se distingue de um sábio que se cala”.

“A palavra foi dada ao homem para explicar os seus pensamentos, e assim como os pensamentos são os retratos das coisas, da mesma forma as nossas palavras são retratos dos nossos pensamentos”.

Frases de Moliére


Tenho certeza de que, agora que conhece a obra de Moliére, você verá a comédia com outros olhos e, se não a apreciava, aprenderá a compreender esse gênero tão rico e instigante.